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Café: extra-forte

Retomando a vida no Café, encontramos Chico Buarque em seu Leite Derramado. Meu primeiro livro do compositor e cantor, uma experiência interessante que trouxe o que pensar. De narrativa leve e atravessada pela história do país, vale as ideias que desperta, sempre com um cafezinho ao lado.

livro=leite-derramado-chico-buarque



Leite Derramado veio através do meu trabalho de curadoria de conteúdos para projetos audiovisuais como uma ideia e fui conhecer a obra. À primeira vista, empolgação: vem coisa boa, Chico Buarque, não tem como não ser bom. Mas, ao entender que a história é sobre um homem em uma cama de hospital, os pelos do braço se arrepiaram. Tenho um problema com o tema da morte e, em especial, por doenças. Provavelmente é marca de uma família com médicos e uma mãe que nos colocava para assistir a dramas pesados nos anos 90. Chego aqui para contar mais.

Eulálio é um senhor centenário em uma cama de hospital que narra suas memórias para alguém. Este alguém varia: sua filha, a enfermeira, o auxiliar de enfermagem, quem estiver passando. As lembranças atravessam a história do país e do mundo em guerras, ditadura, império, escravidão, economia e outros temas por um viés muito particular. Este é um ganho na trama, histórias pessoais que cruzam a grande História são a melhor forma de aproximar o leitor de uma realidade que lhe é estranha e, ao mesmo tempo, reconhecível.

capa do kindle do livro Leite Derramado, de Chico Buarque.

Eulálio apresenta sua família partindo do pai, um homem escravagista que se torna abolicionista e do avô português que emigrou ao Brasil junto com a corte nos idos das ameaças de Napoleão. Ele próprio assume ser, com orgulho, de uma família abastada e marca isso por toda a narrativa, também trazendo a mãe burguesa e controladora, mas já assume, com o passar dos anos, que era como um esnobe ou ex-nobre. Encontramos o grande amor de sua vida, Matilde, cria de cozinha de uma família de pessoas brancas e que, ele mesmo, tem dificuldades em enxergar sua cor e origem. Para o protagonista, ela era irmã das outras meninas daquela família, estudavam na mesma escola no Rio de Janeiro e seu francês arrastado era um charme.. Matilde nos acompanha durante toda a trama pela voz dele e pela falta que ela lhe faz, desaparecida há décadas.

Além dela, vemos o discorrer de sua família em decadência moral, social e financeira. A filha que apanha do marido e perde parte da fortuna, a história dos varões da família sempre com o mesmo nome e derrocada em tráfico, vida sem trabalho na base do jeitinho. A moradia é uma presença na trama, é um dos marcos das finanças em falta por golpes, roubos, ausência de administração e cuidado de todos. A falta de estrutura sólida familiar os leva organicamente a um fracasso generalizado como a todos que, acostumados a uma vida de bonança sem esforço, esquecem de precaver-se contra tormentas.

A graça do livro está na maestria da linguagem. A narrativa memorialista faz sentido ao homem que se perde em devaneios, repete histórias, muda a ordem dos acontecimentos. É interessante ler a amarração da trama, pois nos traz à mente as nossas próprias memórias, tecidas a partir dos sentimentos e sensações. Quando uma lembrança ressurge, nunca é em sentido cronológico como em um livro biográfico, mas parte de um cheiro, uma palavra, música, paladar, afeto. É daí que resgatamos as emoções que trazem o passado, a pessoa, o bicho de estimação, uma viagem, ao presente.

Imagem de rosto de Chico Buarque de Holanda. Autor de Leite Derramado.

É isso o que Chico Buarque faz tão bem. A falação foca no que marcou mais a vida do protagonista e, ainda assim, constrói uma história que nos faz querer saber mais, pela própria forma de contar. Propositadamente, Eulálio se confunde com quem lhe escuta e pode soar perdido e aéreo, como muitos idosos em condição similar. E como muitos idosos em situação similar, garante momentos de lucidez e precisão na escolha das palavras e pensamentos com uma clareza impressionante. O que importa é o que está dentro daquele homem, o que lhe pertence e que ele sente relevante compartilhar, entre os remédios que toma e o entorpecem, e exames de imagem. As memórias, o que o nosso organismo retém, é o que nos marca e molda.

Há um ponto que é próprio do protagonista e que nos deixa em alerta. É a história de um homem branco e velho da zona sul do Rio de Janeiro com suas marcas racistas da velha nobreza e machistas da cultura de então, ainda que pintadas com possíveis ironias e alguma humanidade. Dá uma sensação diferente ler o livro, entre o prazer da excelente escrita presa em um conteúdo que, por vezes, incomoda. Me senti em cima do muro, entre entender a ironia fina e a licença poética do autor em criar o personagem e deixar sair dele tantos descaminhos de época. Há um sentimento estranho no final da história, que nos deixa mais interessados em Matilde e no que falta saber dela, e também na derrocada familiar do que, em si, nas memórias perdidas de contexto de Eulálio.

Por fim, Leite Derramado é um título intrigante e seu significado é lindo e profundo quando chegamos a ele. Novamente, é de Matilde que falamos, de quem queremos saber sempre mais e de quem, como a Eulálio, sentiremos mais falta ao fecharmos o livro.

***

Para me ajudar a manter este espaço sempre vibrante, me paga um cafezinho? É só clicar no buy me a coffee e eu te levo lá! Obrigada!

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sobre o anestesista de São João de Meriti, Rio de Janeiro, que estuprou mulheres em trabalho de parto. Julho 2022.

Hoje eu quis matar alguém. Uma pessoa específica, mas hoje eu entendi a raiva, o desprezo por uma vida. Fica um gosto ruim na boca, uma ressaca sem álcool que dura mais tempo, machuca o estômago, anuvia o cérebro, esgana o coração.

Eu nunca quis matar ninguém. Nem o despresidente, nem Hitler, nem nenhum torturador. Talvez pelas distâncias históricas ou geográficas, ou por privilégio, pude pensar que odiar alguém era desperdício de energia, era um cultivo fétido para fazer germinar uma energia cinza de pó e fumaça.

Mas hoje, ao saber de um médico que estuprava mulheres desacordadas durante o parto de seus filhos, eu quis matar alguém.

Alguém que tornou um dos dias mais importantes nas vidas de tantas pessoas, puro horror e asco. O dia da vida virou um dia de dor, o amor se desfez no ato. O homem que estuprou grávidas vulneráveis, desacordadas em seus momentos talvez mais sublimes e reais, em seus momentos de vir a ser, não merece nada.

Mulheres que querem ser mães, que conseguem rápido ou que penam e sofrem para engravidar. Que chegam ao clímax deste enredo para desfazerem-se como corpos inertes e entregues a um ser que não cabe como humano. Não há humanidade ali.

Este homem eu quis ver morto. Agora, fica o vazio do sentimento depois do enjoo de horas, de uma perda que não é minha e é, é de todas as mulheres. A compaixão nos faz ver além de nós mesmas e aqui, viramos irmãs.

Estou digerindo o peso amargo que tudo apodrece. Pode ser doença, mas talvez seja só maldade. A crueldade, a desumanização, novamente. A certeza, para uns, de que nossos corpos não têm voz, como bonecas ocas à espera de alguém que nos possua, manipule, quebre. Mais uma vez, como todos os dias dos noticiários, fomos nada.

Que se resolva com uma justiça ativa, sem cegueira ou meias verdades. Essa é uma esperança tênue, à beira da desistência da crença nela mesma. A fé na reparação para as vítimas (não há reparo para o horror) é o outro lado da mesma moeda antiga e barata. 

A ver se agora será diferente.

O peso da vontade de matar é muito grande, especialmente quando ele ultrapassa o ponto de ebulição, quando a raiva se esvai e a água, agora morna, tende a esfriar. É a intolerância da vingança, comida vencida que insistimos em mastigar, certos de um futuro sombrio. É um desfavor a nós mesmos, mas, quero acreditar que a humanidade também é atravessada pela ira como uma transformação. Vivemos à beira da perda coletiva de nós mesmos. Talvez ainda tenhamos chance de virar o leme.

Eu nunca mais quero querer matar alguém.

***

Para saber mais sobre o que motivou este texto, foi o crime do médico anestesista que atuava até ontem em São João de Meriti, Rio de Janeiro, acusado de estuprar mulheres sedadas no parto de seus filhos.

Links de referência:
A notícia do G1. Segundo o jornal O Globo online, é apenas a ponta do iceberg, por essa notícia, dizendo que o Estado do Rio de Janeiro tem um estupro a cada 14 dias.
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Faz tempo que não venho indicar filmes e séries para assistir. Talvez por ter esses conteúdos mais perto por conta do trabalho, a percepção é a de que há muito do mesmo, muito barulho por nada, muita massificação de conteúdo. E, para piorar, todos os streamings buscam basicamente os mesmos gêneros e formatos para novas produções. É difícil.


Mas sempre há, no meio do ruído, uma brecha, um som especial. E essa nota particular encontrei em Landscapers, exibida pela HBO Max. Deixando claro, estou no terceiro episódio, mas a série inglesa baseada em fatos reais e protagonizada por Olivia Colman e David Thewlis é brilhante.

O tranquilo, ingênuo e excêntrico casal Edwards é acusado de assassinar os pais abusivos de Susan, a esposa, mais de uma década atrás. O casal, agora na França, assume tê-los enterrado no próprio quintal, como uma forma de cuidado. A polícia inglesa os encontra após uma denúncia e eles retornam à Londres, se entregando para as diligências. Com um humor peculiar entre a inteligência dos gestos, a morbidez dos atos não assumidos e personagens milimetricamente construídos para o deleite do próprio elenco e do público, não há como não se encantar. É viciante.

Olivia Colman | Landscapers

O roteiro flerta com o teatro em cenários de luzes exageradas como se eles próprios fossem personagens, marcando flashbacks, fantasias e o tempo presente, também com projeções de vídeos e filmes ao fundo. A direção de arte e cena criam um clima tão curioso, que pensamos menos no crime e mais em como estão contando aquela história… ou qualquer história. O elenco é estelar; além do casal conhecido, temos Kate O’Flynn (Brexit, Wonderlust, Bridget Jones) e Samuel Anderson (Lady in the van, Loaded, Football Monologues) como detetives cobrindo o caso.

A HBO acertou em cheio ao trazer essa produção da Sky Atlantic para o mercado internacional. Novamente, se trata de um dos gêneros mais consumidos e produzidos no mundo, o de crime verdadeiro, que transita entre ficção e documentário nos dois formatos (filmes e séries), alimentando a curiosidade mórbida e ávida de seus espectadores. Todos os streamings têm produções do gênero aos montes, mas poucas são realmente interessantes. Aqui, a série ficcional traz ainda ao fim de cada episódio, reportagens da época cobrindo com verdade jornalística os atos criminosos de uma família disfuncional.

Samuel Anderson e Kate O'Flynn | Landscapers

Não espere encontrar uma série de crime comum com uma investigação padrão como as que conhecemos. As reconstituições são brilhantes e até as participações curtas do elenco de apoio são muito bem feitas. Também não espere gargalhadas, o humor entra na estranheza dos detalhes, nas interpretações impressionantes de Colman e Thewlis, principalmente, e nas ironias de olhares e diálogos. Tudo se equilibra bem, numa educação inglesa como as que vemos nos cinemas, da hipocrisia escancarada, da educação dos gestos discretos até, provavelmente, a explosão dos acontecimentos e possíveis surtos dos nossos heróis à medida que a trama agudiza.

Fico me perguntando se não está na hora das séries irem para a grande tela. A fotografia, a escolha dos planos, tudo aqui parece feito para os cinemas, inclusive a liberdade criativa na forma como contam a história, mesclando a fantasia que há em nossos protagonistas ao que seriam os fatos à luz do dia, o crime, os possíveis desfechos. É o retorno da ilusão que esperamos e precisamos encontrar quando entramos na sala escura, a experiência de viver aqueles minutos em suspensão e ter o deleite de conhecer uma história bem contada. Landscapers, tem tudo isso com a força de uma história verdadeira. Pra quem quer ver algo diferente, a série é, com certeza, uma boa aposta.

David Thewlis | Landscapers

***

O Café está em constante e parcimoniosa atualização. Em breve, volto com novidades. Para contribuir e deixar este lugar ainda mais aconchegante, dá uma passada no buy me a coffee. Por muito pouco, se faz muita diferença ;)

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Faz 1 ano e alguns dias que vivo com Pituca. Minha vira-lata caramelo, a mais feliz do mundo, deixou também mais feliz e rica a minha vida. Nas mais variadas gestações que vivemos nessa teimosa pandemia, voltar a viver com uma cachorrinha e crescer com ela um amor de vida inteira foi um dos maiores acertos. Sabe por quê?

foto de um filhote de um viralata caramelo sorrindo de frente para a câmera.

Porque ter um cachorrinho ou um gatinho é mais do que ter carinhos gratuitos e uma quantidade infinita de fotos e vídeos fofos. É, para quem não tem filhos e deseja um, uma espécie de teste, com o mesmo grau de responsabilidade no cuidado com uma espécie diferente de ser vivo. Pituca trouxe isso e um tanto mais.

Ela me devolveu a delícia de conviver com cachorros depois de 12 anos apenas visitando os que moraram comigo e moravam com meus pais. Ao adotar Pituca, ela se tornou minha: minha companheira, minha "roommate", minha parceira de aprendizados. Foi por ela que passei a socializar no mínimo possível quando a pandemia ainda era um descalabro triste: precisava sair com ela para as necessidades e para que ela, ainda filhote, perdesse os medos de rua e de outros seres - e eu também.

pituca e a autora.

Pituca não conta o tempo, ela vive como os filósofos contemporâneos mandam: o agora. Se agora dá sono, ela dorme. Se está com fome, pede. Se não está com fome, não adianta empurrar a comida (tenho aprendido essa saciedade com ela), se quer brincar, chama. Se não quer, deixa claro também. Com Pituca não tem metáfora e nem indiretas, mas ela entende muito bem nosso idioma, mesmo sem falar muito.

Precisei adestrá-la um pouco, ficou muito tempo em casa nos primeiros meses de vida porque veio adoentada e tinha um medo, herança de maus tratos. Com o adestrador mais carinhoso que tive a sorte de encontrar, ela foi ganhando confiança e indo para a rua, conhecendo novos amigos. Seus amigos viraram os filhos dos meus novos amigos. Vizinhos que se encontram todos os dias no mesmo horário para as conversas sobre tudo e sobre nada. Nenhuma expectativa além de fazer os pequenos brincarem e fazerem o que precisam. A vida ficou, automaticamente, mais leve e acordar cedo, que não era um problema para mim, virou um prazer.

foto de uma viralata caramelo dormindo. Pituca.

Com um bichinho, a gente aprende como a vida pode ser simples - mesmo que tenha seus momentos super complicados. Lembramos que carinho, afeto e cuidado são tão fáceis de dar e deliciosos de receber. E que tudo isso custa nada. Pituca precisa de espaço e o apêzinho é tão dela quanto meu, então, enquanto não penduro as plantas nas paredes, menos plantas, mais pelos. Acordando mais cedo, tenho o tempo da caminhada com ela, o café da manhã sem pressa, a caminhada logo depois para exercitar o corpo e refrescar a alma, com vista para o mar. Na volta para casa, mais carinho, um banho e o trabalho começa. A vida de rotina pode ser cansativa, mas também nos dá o tempo de pensarmos em novos projetos, desejos, necessidades e até para cochilar lendo um livro na rede. Basta acordar cedo.

Ter um cachorrinho não é um benefício gratuito, bem sabemos. Há um custo envolvido que é, basicamente, o da manutenção de qualquer vida animal. Entretanto, é uma vida tão maravilhosa, que traz tanto e demanda tão pouco, que só consigo perceber lucros, e a despesa é paga com prazer.

pituca na praia de itapuã

Não sei se você tem ou teve um cachorro ou um gato na sua vida. Se teve, sabe do que estou falando e sinto um sorriso de cumplicidade. Se está em dúvida, adote. Há muitos animais incríveis e que precisam do seu abrigo e cuidado, em troca de algo que você nem imagina receber. Eu vivo isso todos os dias e espero viver outros tantos por muitos anos. Viva Pituca, um ano de muito amor e alegrias! 

***

Pituca é uma delícia de cachorrinha, né? Para contribuir com o Café, porque não participar com o valor de um cappuccino ou expresso gostoso? Passa no buy me a coffee e deixa um pouco desse carinho por lá! =)  

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Na primeira crítica do ano, vamos com um assunto que parece batido e velho, mas que está todos os dias diante de nós: a humilhação pública. Conhecida como cultura do cancelamento, o tema do documentário 15 minutes of shame da HboMax, tem tudo a ver com o nosso cotidiano, com empatia, ignorância e respeito. Produzido por quem sabe muito sobre o assunto, Monica Lewinski.

15 minutes of shame, hbo max
O diretor Max Joseph e sua produtora, Monica Lewinski

Quando vivemos um período de crise, de forma geral, somos tomados por emoções e acabamos tomando decisões precipitadas. Parte delas são julgamentos sobre pessoas e fatos com base nas informações que recebemos em qualquer meio: julgamos por uma decisão errada, uma frase equivocada, uma ação precipitada, uma foto – como as que nós mesmos podemos tomar ou produzir a qualquer momento. O que nos diferencia de quem comete o erro? A fama, o dinheiro? Às vezes, quase nada, apenas a sorte de não estarmos sob os holofotes.

O documentário traz uma premissa que vale o filme inteiro: a ideia de que não sabemos a história de cada um e julgamos pelo que achamos ser verdade, baseado em nossos parâmetros subjetivos e no que a mídia diz, o que quase nunca significa a mesma coisa.

Além disso, o filme traz um panorama histórico e explicativo sobre a cultura do cancelamento com exemplos em todo o mundo. Comprovamos que o que vivemos é a repetição de um comportamento social antigo e, nem por isso, correto. Os ditames morais de cada período reforçam a prática e, em 2022, os apedrejamentos e banimentos continuam como os de séculos atrás, literal, metafórica e virtualmente. A evolução do desfile da vergonha em praça pública se tornou a fofoca de tabloides com os papparazzis atrás de novidades perniciosas sobre famosos décadas atrás. Hoje, com as tecnologias disponíveis, estes famosos são qualquer um: influencers, tiktokers, instagrammers, youtubers, subcelebridades, BBBs, podcasters, quando não um cidadão comum flagrado em uma situação delicada.

15 minutes of shame, hbo max
Na tradução: 15 minutos de vergonha

Fico me perguntando se o sucesso dos reality shows também não se trata disso, do nosso desejo em julgar o outro e ter ali um programa de TV “realista” que oferece esta possibilidade com pessoas interpretando a si mesmas. Lembremos dos atores de novelas que personificavam heróis e vilões e eram abordados na vida real, recebendo elogios e degradações públicas por uma obra ficcional. Hoje, a ficção não é suficiente. Os realities substituíram a fantasia se fantasiando, eles mesmos, de verdade. Sentados nos sofás das nossas salas de estar, somos os juízes detentores da moral e bons costumes do mundo e distinguimos os dignos de nosso apreço dos que merecem a execração pública. O que não podemos esquecer é: tudo isso é planejado. A humilhação e o banimento dos séculos XX e XXI são uma forma de fazer dinheiro pautada na opinião pública, conduzida através da apresentação de seus personagens e histórias na TV e nos algoritmos online. Nada é por acaso.

No filme, escutamos os especialistas de diversas áreas que trazem reflexões e aprofundam o tema, como a neurocientista que conta como nosso cérebro percebe um indivíduo, indicando que para isso, não basta ter conhecimento sobre ele, é preciso perceber suas emoções e ver seu rosto, conhecer suas expressões. Em tempos de internet, isso se torna supérfluo, especialmente no twitter, o que dá mais poder e menos inteligência às nossas verborragias sobre alguém que, em nosso subconsciente, sequer é entendido como humano. Outra pesquisadora traz a informação de que nosso cérebro libera dopamina ao descobrirmos que um malfeitor foi condenado por seus atos. Partindo disso, fica fácil relembrar tanto a força justa dos movimentos sociais que explodiram na internet da última década em busca de justiça, quanto quando achamos que um indivíduo fez algo errado e foi condenado em nossa praça pública virtual. É a mesma satisfação, mas não pelas mesmas razões. É Tiffany Watt Smith quem estuda o assunto e vai além, falando sobre o prazer que sentimos sobre, com o perdão da palavra, a desgraça alheia.

O filme é interessante e, mesmo tentando abarcar todas as possibilidades de vergonha pública sem necessidade, segue bem, nos fazendo pensar em nossos comportamentos, reações online e no mundo real, e em como somos manipulados todos os dias. É um filme que conversa bastante com O Dilema das Redes e Cidadão Quatro. Produções importantes para pensarmos no conteúdo que produzimos, na atenção que damos ao que nos chega online, em como somos vigiados, no que consumimos virtualmente e como isso nos afeta, nos faz construir linhas de pensamento que se retroalimentam, muitas vezes, alheios à nossa consciência. Somos inundados por uma gama de informações programadas com o objetivo de consolidar opiniões e promover engajamento, gerando lucro para quem as produz. Neste jogo, só nos resta sangue frio e um olhar mais atento ao que nos chega, com o cuidado de promover um engajamento pautado no cuidado e respeito ao outro além, claro, da veracidade do que absorvemos e propagamos. Saímos do documentário com uma reflexão sobre quem somos nestes tempos de manipulação cibernética de forma leve, atenta e com exemplos claros de pessoas que, possivelmente, nós também julgamos quando suas histórias foram à público. Estes são os pouco mais de 15 minutos de vergonha que valem o ingresso.

***

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a última praia de 2021 terminou assim
2021 foi um ano atropelado. Reduzimos um pouco do pânico da pandemia, nos vacinamos e quem pôde, se afundou em trabalho e nos raros momentos de folga. Navegamos em águas turbulentas, mas, talvez agora com um pretenso bote salva-vidas atrelado. Respiramos fundo algumas vezes e até mergulhamos no mar, na esperança do banho de água salgada que tira mau olhado e outras coisas ruins.

Mas foi corrido, foi puxado. Do lado de cá, investi em muito trabalho e o Café acabou em segundo plano. Entendi que não conseguiria fazer tudo ao mesmo tempo e o meu tempo livre foi fora das redes, de reentrada nos livros, de cuidado e carinho comigo, com os meus e com Pituca.

Entendi o óbvio: não dá fazer tudo. Então, da mesma maneira que não consigo usar o twitter porque ele me inunda de informações, me dando ainda mais trabalho, desacelerei aqui. E gostei. Amo o Café, continuo nele, mas estou gostando da calma, do respiro e do banho de mar. O Café segue vivo e forte,  e eu venho, com sorte, escrevendo com frequência, mas sem pressa. As coisas seguirão em seu ritmo, com o tempo do olhar atento e espero, melhores do que já foram.

Quero falar sobre os nossos assuntos, o Café é um espaço para trocar ideias sobre livros, filmes, séries, plantas, viagens, cachorros, praia, por uma vida saudável e gostosa. É o que eu quero para o nosso ano, que ele seja de sossego, trabalho, vida mansa e prazeres, os melhores possíveis. Vamos juntos?

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Tati Reuter Ferreira

Baiana, curadora de projetos audiovisuais, escritora e crítica de cinema. Vivo de café, livros, cinema, viagens e praia. E Pituca.


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