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Café: extra-forte

Quem me conhece um pouquinho sabe que eu evito, como o diabo foge da cruz ou o vampiro da luz, filmes de drama, especialmente os que envolvam doenças. Meu pobre coração não aguenta, sofro demais, provavelmente por ter visto os dramas dos anos 90 que minha mãe me obrigava. Talvez até já tenha comentado sobre isso por aqui, mas hoje, justamente, me aconteceu isso, estando sozinha e quase sem perceber. Não me arrependi.


Robert Downey Jr., esse imenso ator que muita gente conhece, é filho de um diretor de cinema independente, Robert Downey Sr.. Acompanhando a idade avançada do pai e suas questões de saúde, Jr., resolve fazer filme com e sobre o Sr., em uma combinação de olhares dos dois artistas.

Fui pega de surpresa, vi o teaser na Netflix, é leve e tem um humor gostoso que me tomou de vez, nem li a sinopse. Ao mesmo tempo, ele traz um dos grandes temas que gosto de ler, ver, conhecer, conviver: a família. Documentários sobre famílias ou pessoas no contexto familiar podem parecer egocêntricos, mas há algo que sempre nos aproxima deles. Acredito que sejam as excentricidades, as experiências de vida, as histórias das famílias e, acho que mais do que tudo, essa intimidade e ternura genuínas que costumam abraçar obras do gênero. Neste caso, um filme de um grande ator sobre um grande diretor, de início, pode parecer distante de nossa realidade, mas é muito mais próximo de nós do que imaginaríamos.

Aqui vemos Robert Downey Sr., o diretor de comédias underground, um artista que eu não conhecia e que vou buscar seus filmes. Os trechos deles aparecem e contêm um humor ácido, crítico e, ao mesmo tempo, inocente que percorre a família, o mesmo que me pegou no teaser. Vemos o interesse e intenção de Robert Downey Jr. em se aproximar ainda mais do pai, com o carinho, a paciência e muito amor, enquanto se mostra como filho e também pai ao trazer seu filho para a câmera. É possível ver também, como um corte, uma tentativa de evitar expressões maiores de dor pela perda iminente, ainda que não tenha se imiscuído delas. Ele trouxe o sentimento na forma de nostalgia e em reflexões leves e que cabem a todos nós e, talvez por isso, o diretor que os acompanhou tenha escolhido o preto-e-branco na fotografia.


À medida que o filme avançava, eu ficava dividida entre estar amando assistí-lo e sofrer ao já prever um pouco o final, como se fizesse parte daquela narrativa. Esse é o grande trunfo das boas histórias, elas nos transportam e nos fazem viver outros mundos, pessoas, experiências. Fiquei presa, talvez pela empatia e pela certeza de que todos teremos um fim, como os próprios filmes. 

O fato é: Robert Downey Jr. traz uma obra leve, terna e com muita vida, como se o próprio ator quisesse revisitar partes dele no futuro, rememorando a história de seu pai e de seu filho naquele período, como um acalento. Além da questão íntima e familiar, o filme nos enriquece mostrando a grandiosidade de uma cinematografia que poucos conhecem, mas cujas referências e influências se veem nos filmes de estúdio. Não é um filme sobre cinema, mas, nesta família, ele está em todo lugar, tentando dar conta de partes de uma vida infinita, com suas tragédias e comédias e nos estimulando a conhecer mais sobre as obras destes extraordinários homens.

Uma lindeza para fechar esse fim de semana.

***

O Café está em constante e parcimoniosa atualização. Em breve, volto com novidades. Para contribuir e deixar este lugar ainda mais aconchegante, dá uma passada no buy me a coffee. Por muito pouco, se faz muita diferença ;)
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Na primeira crítica do ano, vamos com um assunto que parece batido e velho, mas que está todos os dias diante de nós: a humilhação pública. Conhecida como cultura do cancelamento, o tema do documentário 15 minutes of shame da HboMax, tem tudo a ver com o nosso cotidiano, com empatia, ignorância e respeito. Produzido por quem sabe muito sobre o assunto, Monica Lewinski.

15 minutes of shame, hbo max
O diretor Max Joseph e sua produtora, Monica Lewinski

Quando vivemos um período de crise, de forma geral, somos tomados por emoções e acabamos tomando decisões precipitadas. Parte delas são julgamentos sobre pessoas e fatos com base nas informações que recebemos em qualquer meio: julgamos por uma decisão errada, uma frase equivocada, uma ação precipitada, uma foto – como as que nós mesmos podemos tomar ou produzir a qualquer momento. O que nos diferencia de quem comete o erro? A fama, o dinheiro? Às vezes, quase nada, apenas a sorte de não estarmos sob os holofotes.

O documentário traz uma premissa que vale o filme inteiro: a ideia de que não sabemos a história de cada um e julgamos pelo que achamos ser verdade, baseado em nossos parâmetros subjetivos e no que a mídia diz, o que quase nunca significa a mesma coisa.

Além disso, o filme traz um panorama histórico e explicativo sobre a cultura do cancelamento com exemplos em todo o mundo. Comprovamos que o que vivemos é a repetição de um comportamento social antigo e, nem por isso, correto. Os ditames morais de cada período reforçam a prática e, em 2022, os apedrejamentos e banimentos continuam como os de séculos atrás, literal, metafórica e virtualmente. A evolução do desfile da vergonha em praça pública se tornou a fofoca de tabloides com os papparazzis atrás de novidades perniciosas sobre famosos décadas atrás. Hoje, com as tecnologias disponíveis, estes famosos são qualquer um: influencers, tiktokers, instagrammers, youtubers, subcelebridades, BBBs, podcasters, quando não um cidadão comum flagrado em uma situação delicada.

15 minutes of shame, hbo max
Na tradução: 15 minutos de vergonha

Fico me perguntando se o sucesso dos reality shows também não se trata disso, do nosso desejo em julgar o outro e ter ali um programa de TV “realista” que oferece esta possibilidade com pessoas interpretando a si mesmas. Lembremos dos atores de novelas que personificavam heróis e vilões e eram abordados na vida real, recebendo elogios e degradações públicas por uma obra ficcional. Hoje, a ficção não é suficiente. Os realities substituíram a fantasia se fantasiando, eles mesmos, de verdade. Sentados nos sofás das nossas salas de estar, somos os juízes detentores da moral e bons costumes do mundo e distinguimos os dignos de nosso apreço dos que merecem a execração pública. O que não podemos esquecer é: tudo isso é planejado. A humilhação e o banimento dos séculos XX e XXI são uma forma de fazer dinheiro pautada na opinião pública, conduzida através da apresentação de seus personagens e histórias na TV e nos algoritmos online. Nada é por acaso.

No filme, escutamos os especialistas de diversas áreas que trazem reflexões e aprofundam o tema, como a neurocientista que conta como nosso cérebro percebe um indivíduo, indicando que para isso, não basta ter conhecimento sobre ele, é preciso perceber suas emoções e ver seu rosto, conhecer suas expressões. Em tempos de internet, isso se torna supérfluo, especialmente no twitter, o que dá mais poder e menos inteligência às nossas verborragias sobre alguém que, em nosso subconsciente, sequer é entendido como humano. Outra pesquisadora traz a informação de que nosso cérebro libera dopamina ao descobrirmos que um malfeitor foi condenado por seus atos. Partindo disso, fica fácil relembrar tanto a força justa dos movimentos sociais que explodiram na internet da última década em busca de justiça, quanto quando achamos que um indivíduo fez algo errado e foi condenado em nossa praça pública virtual. É a mesma satisfação, mas não pelas mesmas razões. É Tiffany Watt Smith quem estuda o assunto e vai além, falando sobre o prazer que sentimos sobre, com o perdão da palavra, a desgraça alheia.

O filme é interessante e, mesmo tentando abarcar todas as possibilidades de vergonha pública sem necessidade, segue bem, nos fazendo pensar em nossos comportamentos, reações online e no mundo real, e em como somos manipulados todos os dias. É um filme que conversa bastante com O Dilema das Redes e Cidadão Quatro. Produções importantes para pensarmos no conteúdo que produzimos, na atenção que damos ao que nos chega online, em como somos vigiados, no que consumimos virtualmente e como isso nos afeta, nos faz construir linhas de pensamento que se retroalimentam, muitas vezes, alheios à nossa consciência. Somos inundados por uma gama de informações programadas com o objetivo de consolidar opiniões e promover engajamento, gerando lucro para quem as produz. Neste jogo, só nos resta sangue frio e um olhar mais atento ao que nos chega, com o cuidado de promover um engajamento pautado no cuidado e respeito ao outro além, claro, da veracidade do que absorvemos e propagamos. Saímos do documentário com uma reflexão sobre quem somos nestes tempos de manipulação cibernética de forma leve, atenta e com exemplos claros de pessoas que, possivelmente, nós também julgamos quando suas histórias foram à público. Estes são os pouco mais de 15 minutos de vergonha que valem o ingresso.

***

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Sabe aquela história de que quando a gente faz o que gosta, não vemos o tempo passar? É um pouco o que acontece com o Vozes da Mata, uma expedição - documentário entre o Rio de Janeiro e o Pantanal.

Documentário Vozes da Mata, expedição da Orquestra Maré do Amanhã ao Pantanal. Aldeia Urbana Marçal de Souza
Vozes da Mata | Aldeia Urbana Marçal de Souza | foto: Marco Brendon

Um projeto com futuro

Realizado a várias mãos e com muito cuidado, Vozes da Mata é uma expedição dos músicos da Orquestra Maré do Amanhã à região do Pantanal, para levar música e participar do intercâmbio cultural entre as duas regiões do país. Além do que já tocam, há uma sinfonia em preparação, sendo composta por Francis Hime. A ideia é chamar atenção para o bioma que pouco aparece nos noticiários e que sofreu bastante no início do ano (e da pandemia) com as queimadas. Perdemos quase 30% da vegetação nativa, além de machucar e matar vários animais. 

Juntamente com a expedição, estamos produzindo um documentário sensível e atento para levar a informação e a arte adiante. Lígia Feliciano e Lygia Barbosa são as diretoras, duas mulheres retadas que tive a sorte e honra de conhecer. Aliás, neste projeto só tem fera. A equipe da Orquestra, músicos jovens, experientes e sensíveis são atentos ao que se passa, com uma visão crítica da vida. O projeto  musical existe há mais de dez anos e forma 3800 jovens entre os que estão na Orquestra e aqueles de escolas públicas do complexo de favelas da Maré. Poderia passar um tempo só falando deles aqui, da importância de seu trabalho para nós e para eles próprios, em como isso também converte uma realidade de esquecimento em arte e transforma vidas. 

vozes da mata, uma expedição e um documentário que leva música ao Pantanal.
Vozes da Mata | um projeto coletivo
A realização conta com o desenvolvimento da Inspirartes e da Escarlate, a produtora que toca o documentário e onde eu trabalho atuamente. A Escarlate é uma empresa enxuta e com grande potencial, uma visão de negócios importante e muita mulher talentosa, um panorama diferente ao que estamos acostumados na área. Não suficiente esse elenco, contamos com a curadoria ambiental da WWF-Brasil. 

Como estamos em pandemia, conseguimos montar o conceito e a pré-produção de tudo à distância, entre mil chamadas telefônicas e reuniões online. Pessoas no Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro se juntaram, tornando tudo verdadeiramente brasileiro. Esta confluência de desejos, observações e conversas garantiram um produto híbrido e rico em referências e experiências. 

Pantanal, Orquestra Maré do Amanhã
Vozes da Mata | Orquestra Maré do Amanhã | foto: Marco Brendon

Documentário como aprendizado

Neste complexo, eu tive a sorte de fazer parte da pesquisa para o desenvolvimento do documentário. Trocamos muitas ideias entre equipe técnica e produtora, pensamos, estudamos. Coube a mim entrevistar a maior parte dos personagens e um mundo se abriu. Conversar com essas pessoas, ter acesso às suas vidas, compartilhar histórias tem sido não só inspirador, como motivador. Ficar até 1h, 2h da manhã 'entrevistando' - porque sempre foi mais uma conversa do que qualquer outra coisa - expandiu meus horizontes e me trouxe para o que eu sempre gostei de fazer na vida: aprender.

Os documentários garantem esses momentos. Aqueles mais sensíveis que buscam encontrar, antes de reafirmar alguma coisa, me movem e são parte da minha formação acadêmica e de vida. O Vozes possibilita isso de forma exponencial, quando cruzamos cidades conhecidas como Rio de Janeiro e Campo Grande e outras que me são novas, como Ladário, Aquidauana e Corumbá. Comunidades e Orquestras Indígenas, Aldeias Urbanas, frações do Brasil que não vemos todos os dias e pessoas, sempre pessoas reafirmando suas culturas e origens - as mais nacionais possíveis, mostram que nossa terra é infinita, plural, resistente e resiliente. Não apenas isso, mas o retorno ao audiovisual com uma pegada mais criativa, buscando conteúdo e forma em conjunto, com uma equipe técnica e artística experiente e conceituada. Quase um presente, um trabalho desses.

Expedição de reconhecimento dos povos originários ao Pantanal pela Orquestra Maré do Amanhã
Vozes da Mata | integração e re-conhecimento | foto: Marco Brendon
O Vozes da Mata segue em produção neste momento, as equipes do filme, da Orquestra e as locais no estado pantaneiro estão juntas, fazendo história. E esta é a primeira etapa, no Mato Grosso do Sul. Após a temporada de chuvas, investiremos para o Mato Grosso e quem sabe o que o futuro nos aguarda. 

Para acompanhar o dia a dia deste projeto único e que tomará o país em breve, siga o Vozes da Mata no instagram e fique atento. Tem muita gente boa participando e querendo participar. Vamos dar voz a quem e o que importa. Vamos juntos.

***

Para seguirmos compartilhando informações e conhecimento, me ajuda com um cafezinho? Custa quase nada e faz uma diferença danada na vida! ;)
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Documentário parece um termo pesado que costumava estar associado a filme chato, como aqueles que passavam nas tardes de domingo, com bichos correndo pela África. Enquanto ainda acho que esses têm o seu valor, vim falar da outra categoria, que nos prende até mais do que um filme de ficção. Vamos conversar sobre o novo documentário da Netflix, Os Segredos de Saqqara para entender melhor este tipo de filme e porque é tão importante. E legal!

crítica do filme Os Segredos de Saqqara (2020), o novo documentário da Netflix
Segredos de Saqqara | Netflix

Acabei de assistir a Os segredos de Saqqara, o documentário mais novo da Netflix, lançado neste 2020. Ele conta a história de uma equipe de arqueólogos egípcios que estão escavando a região de Saqqara, um dos sítios arqueológicos mais antigos do mundo, pertinho do Cairo, no Egito. O que podem descobrir ali, abrirá margem para ampliar a história do Egito e, portanto, do mundo como conhecemos. Mas, aí você me pergunta: por que não fizeram uma ficção sobre essa história? Não seria melhor?

O documentário é um gênero cinematográfico?

Não. O documentário não é um gênero como a comédia, o romance, o drama. Assim como 'filme estrangeiro', 'alternativo' ou 'cinema nacional' não são gêneros. O documentário é uma forma de fazer filmes que busca assuntos pautados em fatos, em situações que estão ocorrendo ou ocorreram em nossas vidas. Essa é uma definição muito ampla e que, se formos pensar, também vale para a ficção.
 
A discussão sobre o que é documentário esbarra nas zonas cinzentas da produção audiovisual. Por isso, hoje é mais comum se tratar de filme de ficção e não-ficção. Na minha humilde opinião de não acadêmica, dá para seguir das duas maneiras. Hoje, claramente entendemos se o que estamos vendo é um documentário ou um filme de ficção. Como assim?

escavação na tumba de Wahtye em Saqqara. Documentário Os Segredos de Saqqara.
Os Segredos de Saqqara | Escavação na tumba de Wahtye 
A linguagem é outra. O documentário busca respostas, está atrás de entender sobre um assunto, de conhecer, questionar. Os filmes de ficção partem de um assunto e elaboram uma narrativa sobre ele, um conceito fechado, para construir a história a partir dali. O documentário procura as histórias. Talvez as diferenças devam partir daí. 

Documentários relevantes | A crítica de Os Segredos de Saqqara

Vamos partir do nosso exemplo mais atual: Os segredos de Saqqara. Um filme feito no outro continente, a mais de um oceano de distância, no Egito. Sobre uma escavação arqueológica que busca resquícios da civilização local há mais de 4000 anos. Por que isso é importante para nós, brasileiros (ou humanos, que seja)?

Saber um pouco sobre uma escavação no Egito pode não ter nenhuma relação direta com a gente, se pensarmos rapidamente. Mas, considerando que o Egito é um dos berços da civilização como conhecemos hoje, criamos uma relação. Saber como as pessoas se comportavam, que ferramentas usavam, como se comunicavam, como era a ciência naquela época, contribui para criamos uma linha evolutiva de todos esses aspectos, de nós mesmos. Se pensarmos que só sabemos o que sabemos hoje, graças a pesquisadores, escavadores, arqueológos, antropólogos como estes, conseguimos imaginar assim, que em seu trabalho, eles encontram a nossa História no meio das areias e sob muita terra.  

os antropológos e arqueólogos de Saqqara
Os Segredos de Saqqara | Arqueológos e antropólogos egípcios em Saqqara
Então, a equipe de História e Ciência com seus escavadores chega a Saqqara com o objetivo de encontrar, a partir da existência das pirâmides no entorno, o que havia de civilização por ali. Com isso, o que eles buscam é puramente conhecimento. E, o mais surpreendente, é que eles encontram muito mais. Eles encontram um novo braço da História. A tumba de Saqqara tem talvez 4400 anos e uma família inteira dentro, os Wahtye. Um registro raríssimo e precioso para a nossa vida. Por terem rituais fúnebres e uma crença fértil de vida após a morte, aqueles egípcios deixaram inúmeros registros em hieróglifos - os desenhos antigos talhados nas paredes - contando parte de sua história.

Enquanto escavavam em um prazo curto - a seis semanas do Ramadã, quando perderiam a receita para manter o projeto, encontraram muito mais artefatos e História além daquela da família Wahtye. E assim, não só conhecemos um pouco mais sobre aquela civilização, como passamos a dar outra importância à busca por conhecimento destes grandes profissionais. Do escavador sem formação acadêmica, mas, com um olhar clínico e apurado ao doutor em antropologia, antropozoologia, egiptologia, arqueologia. Estão todos ali buscando aprender.

Assim, documentários são sim, importantes. Se forem como este então, são perfeitos, porque trazem as emoções das descobertas, o cronograma que nos deixa tensos à medida que o tempo vai se tornando escasso, as relações entre os colegas de trabalho, o bem comum. É um filme sobre relações humanas no fim das contas e, mesmo que não seja o nosso objeto particular de estudo, o filme nos fisga na narrativa, em uma história que não vemos ou ouvimos falar todos os dias. Desta forma, o documentário é, também, um filme de entretenimento.

Crítica de Os Segredos de Saqqara, Netflix
Os Segredos de Saqqara | A tumba de Wahtye 
E se buscamos uma análise de estrutura narrativa, encontraremos protagonistas, personagens secundários, jornadas, aventura. Os Segredos de Saqqara é um filme de revelações e a cada novo momento, ficamos abismados e quase viciados esperando a seguinte descoberta e aguardando as análises sobre o que já foi encontrado. Escavar e achar quase intacta uma tumba egípcia de 4000 anos é um presente para nós e isso fica evidente nos olhares surpresos de toda a equipe, de qualquer hierarquia ali dentro. É um filme especial.

Documentário é filme?

Essa é uma pergunta que costuma aparecer de outra maneira, como: é filme ou documentário? Quando vou ao cinema assistir um documentário, um amigo sempre comenta: ah, achei que fosse ver um filme ou ainda, documentário não é filme. Esta premissa parte da mesma da introdução. Documentário é cinema, documentário é filme. 

As formas de fazer ficção e não-ficção são análogas; ambas envolvem câmeras, equipes técnicas, arte, criatividade, roteiro, projeto, são feitos da mesma matéria. A diferença é a premissa: enquanto a ficção parte da história fechada, o documentário busca uma história para contar. 

os segredos de saqqara, egito.
Os Segredos de Saqqara | Outras descobertas do sítio
Com isso sim, Documentários são filmes, sempre - ou séries de tv, como a que esperamos que fosse, Os Segredos de Saqqara. Claramente, o filme nos deixa presos até o desfecho, com a vontade de continuar aquela expedição que encontrará mais surpresas. Este é apenas um dos grandes documentários lançados esse ano. Vale lembrar que começamos 2020 revendo os filmes do Oscar, Honeyland, For Sama, The Cave e outro dia choramos e nos alegramos com Professor Polvo e nos indignamos com One Child Nation. Ficamos atentos e tensos com O Dilema das Redes e com outro importante que acompanha a temática, expandido para a política, Privacidade Hackeada. 

Documentários são portas para uma nova perspectiva ou para ilustrar algum acontecimento. Nos trazem entusiasmo, nos fazem aprender ou relembrar alguma situação ou fato. Nos encantam com histórias brilhantes, como as que Eduardo Coutinho costumava contar. São tão cinema como qualquer ficção. Muitas vezes, são até melhores.  


Gostou do trailer? Invista nesse documentário e se gosta de não-ficção, tem um festival ótimo no país que segue online neste ano de pandemia, o É Tudo Verdade. Vale a pesquisa!

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Vamos manter o café quentinho e sempre fresco? Vem comigo!
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Poderia ser mais um filme sobre o fundo do mar e as maravilhas da natureza, mas o documentário Professor polvo (My octopus teacher) ultrapassa essa ideia. É um dos melhores filmes do ano e conto aqui porquê. Assista na netflix.

professor-polvo-netflix
Craig Foster | Professor Polvo
Craig Foster é um homem em crise sobre seu trabalho enquanto cineasta e sobre a vida que vive na costa oeste da África do Sul, no Cabo das Tormentas. Tendo passado boa parte da sua existência próximo ao mar, mantém uma relação íntima e fundamental com o oceano, que ultrapassa turismo ou passeio. O mar faz parte dele. Buscando um caminho para se reconhecer, Craig começa a mergulhar todos os dias e ali encontra um polvo, com quem passa a fazer contato. Este é o começo de nossa história.

Com uma sinopse simples, parece uma história sobre um lunático, mas a sensibilidade, conhecimentos e cuidados que o documentarista tem com a vida subaquática e selvagem supera qualquer ideia preconcebida que tenhamos. Seu preceito é simples, entrar no mar - o nosso oceano Atlântico - e acompanhar a vida daquele animal em simbiose com os demais, na floresta de algas.

Mas, o que dizer desse título? Em inglês e português, o documentário Professor Polvo é de extrema relevância. Os diretores e roteiristas Pippa Erlich (em seu filme de estreia) e James Reed (experiente cineasta em filmes do gênero) colocam a natureza em protagonismo e não o personagem humano que conta a história. Aqui, estamos entregues ao mar, ao oceano de águas claras em impressionante fotografia, de diversidade de cores e formas, muito além de nossa imaginação ou dos livros de escola. E o mais interessante: não é um documentário de denúncia.

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Craig Foster e Pippa Erlich | Professor Polvo
Considero o tópico denúncia importante, porque hoje falamos muito sobre o assunto. Abundam documentários sobre vida animal, sobre plásticos e poluição no mar - vale assistir o ótimo Oceano de Plástico - sobre tudo o que fazemos para tentar destruir o planeta (e ainda Maidentrip, a história de uma garota que decidiu velejar sozinha pelo mundo), mas a busca de Professor Polvo é a redescoberta, como se estivéssemos diante da melhor definição de vida em comunhão. A construção do filme traduz isso muito bem, quando começamos a perceber o filho de Craig Foster em cena, sendo o ponto focal por uns instantes, tendo a família como base, como se a história e relacionamento com o polvo o trouxesse para perto dos seus.

O documentário ainda é um ganho imenso para a netflix. O streaming, apesar do volume quase infinito de produções de todo o tipo, anda carente de assuntos relevantes e sensíveis, como se a prateleira de documentários, clássicos e cinema de arte tivesse desaparecido das nossas saudosas locadoras. Professor polvo é ainda, arrisco dizer, a melhor forma de branded content - talvez meus estudos recentes em marketing digital estejam me afetando mais do que eu gostaria - da natureza. Ele traz uma poesia no olhar, no trato das imagens, como se todos ali estivessem e fossem - como devem ser no dia a dia - preocupados com este ambiente tão rico e sensível. Assim, por mais que não enfatize e nem traga à pauta o tópico de preservação ambiental, ele se torna óbvio e imperativo.

Há muito o que ver e perceber aqui. A narrativa de Craig Foster nos aproxima da história, queremos viver aquele dia a dia, mergulhar naquela selva de imensas árvores de algas - vivendo muito perto do mar, nunca as tinha visto tão grandes, só chegam fragmentos na minha costa baiana - e acompanhar o mundo que conhecemos tão pouco e que nos traz tanto. Ao nos depararmos com as transformações da natureza e suas rotinas por um ano, somos tomados por aquele olhar, quase esperando que Professor polvo não seja mais um documentário, mas uma série. 

professor-polvo-documentario
Professor polvo | netflix
Mesmo sendo de extrema sensibilidade a história pessoal de transformação de nosso protagonista humano, é do animal que queremos saber mais. Como Craig, estamos ansiosos por saber o que acontece a cada dia que se vai ao mar, o que se passa ali, a perceber nuances, diferenças na água, no ritmo das ondas, no reencontro com os animais que já não se assustam com nossa presença. Tubarões, peixes, algas, moluscos, medusas, corais, águas-vidas, mamíferos - tudo em alta definição para deleite de nossos olhares e corações. Professor polvo dá aulas de vida, no sentido mais profundo e completo que possa existir. Imperdível e maravilhoso, o documentário está na netflix.

Assiste ao filme Professor polvo e me conta o que achou? Se gosta de dicas de filmes, séries, livros, aparece sempre por aqui, toda semana tem conteúdo novo, relevante e interessante no Café. E se quer me ajudar a mantê-lo funcionando a todo vapor, vem no buy me a coffee! Com tão pouco, já se faz muito =)
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Fora do tempo e do espaço conhecidos por nós, vive uma mulher com sua mãe idosa em uma casa de pedra, sem água ou luz. Hatidze produz mel com suas abelhas de forma artesanal, tradicional e sustentável – com técnicas que lhe foram passadas através de gerações e é, hoje, a única mulher no mundo a praticá-las. O filme é sobre ela.

Documentários continuam sendo a forma mais criativa de lidar com o mundo. São filmes que trazem em seus processos, histórias que jamais saberíamos, culturas que nunca veríamos, vidas importantes e pessoas que jamais conheceríamos de outra maneira. Sua forma de produzir, às vezes como um blockbuster e outras com uma equipe enxuta, encontra nos melhores filmes novas buscas e aprendizados, muito mais do que a reafirmação de discursos estabelecidos. 


Hatidze vive neste lugar montanhoso e desértico, cuja cidade mais próxima está a 4h de caminhada, onde ela vende sua produção. De todo o mel que retira, metade permanece com as abelhas e com esta fórmula, este acordo com a natureza, a vida segue. Uma família nômade – pai, mãe e sete filhos – com seu gado, se avizinha e tudo se transforma. Este é o inesperado da vida que vira filme.

A família nômade encontra uma amiga em Hatidze, mas o pai – do típico patriarcado universal – ao saber da técnica e potencial local, decide também cultivar abelhas para sustentar sua família, como um extra além da produção de gado. O problema está no processo extrativista, que afeta a vida de nossa heroína drasticamente. Isolada do mundo e de todos, ela acompanha o processo desrespeitoso com a família dele, com a natureza e com ela mesma, e insiste algumas vezes em que se repense o cultivo, que só funciona se sustentável. Mulher, sozinha, com uma idosa acamada em casa, em uma terra em que só existe a lei da natureza, não há muito o que fazer.


O filme segue e a resistência e resiliência dessa mulher são uma fonte de força que vai nos contaminando, nos tomando por dentro sutilmente e então estamos naquela região montanhosa com ela e sua mãe, com as crianças, com o pai irritante e ignorante, e é uma situação difícil, de sobrevivência mútua, de tentar entender todos e de se apaixonar por Hatidze. Ela é a força da natureza em forma humana, o elo e equilíbrio, o contato primordial em que a partir da mulher, a humanidade deveria se entender como parte do Cosmos e não conquistador dele.

É um filme de observação, que se aproxima por três anos dessa família de mulheres, que vive um pouco com elas, que vivem com quase nada. O que se vê é uma vida ancestral, que em duas mulheres há toda a História. O que sentimos é mérito dela e da equipe do filme, que nos trouxe tão sensivelmente uma obra de respeito e honra às mulheres, visíveis ou não, cujas vidas deveriam servir de modelo do que deveria ser humanidade, consciência de mundo e sustentabilidade. Um filme que deve ser visto por todos.  


Link para o site do filme.
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Netflix lançou este ano um documentário de 39 minutos chamado Heroína, que trata de uma dura realidade em Huntington, West Virginia, nos Estados Unidos – crescente uso de heroína na cidade. Curto, bem feito e importante, vale atentar para cada detalhe e, tanto da forma de tratar do tema, quanto de como as protagonistas lidam com as situações mostradas ali..

Jan Rader é a chefe do corpo de bombeiros da cidade e atende às chamadas de emergência por overdose que abundam no local. Este é o primeiro choque que levamos, a quantidade de chamadas por dia, o índice crescente de uso de uma droga tão famosa décadas atrás, que nos parecia esquecida hoje, que quase não é mencionada em tempos de anfetaminas, ácido, maconha e cocaína. Não que todas estas drogas não existissem concomitantemente com a injetável, mas – talvez por ser injetável e causar uma impressão forte e triste – não ouvimos mesmo falar, pelo menos nos programas de TV, filmes e séries.

Não há mais o romantismo da droga, aquelas cenas em câmera lenta de Trainspotting, de  Cristiane F, de Diário de um Adolescente, de Streetwise. Prestando atenção a estes filmes, o próprio romantismo é criação dos personagens, universo dos viciados que precisam daquele êxtase – contundente, já que a droga de fato promove efeitos de prazer – ainda que raros e efêmeros. O fato é que nesta pequena cidade carvoeira americana, onde parece que nada acontece, o maior problema é o uso. É o que destrói famílias e é seu combate o objetivo de Rader, da juíza Patrícia Keller e de Necia Freeman, da Brown Bag Ministry, um programa que oferece alimentos, produtos de higiene e aconselhamento para usuários e ex-usuários de substâncias.

Jan Rader
O filme é importante porque retoma questões sérias e, muitas vezes, invisíveis às pessoas que não têm convívio ou relação com o assunto, mas que – nem que seja por curiosidade ou senso de comunidade – agora podem refletir. Há um momento que um dos bombeiros, em um debate, fala com Jan Rader sobre o uso de naloxona, uma droga que interrompe parte do efeito provocado pela heroína em uma overdose e ajuda a reavivar o usuário. O bombeiro então pergunta se esse uso não criaria uma tábua de salvação ao usuário, se o uso do medicamento não contribuiria para persistência no uso e um retardo no combate. Jan responde, entendendo a naloxona como um salvamento sim, que ao manter um usuário vivo, há, pelo menos, uma esperança dele se tornar ex-usuário e então, estando vivo, ser um cidadão, contribuinte e ajudar outros que estiveram e estão naquela situação. É uma fala brilhante que nos faz pensar nos discursos de lógica fácil que costumamos ouvir sobre outras drogas, culpabilidade e vício. O programa de drogas que leva o apoio da justiça local sob o comando da juíza Patrícia Keller é a prova de que quem está ali, é responsabilizado por seus atos e paga por eles – o que não significa que eles não terão suporte para transformar suas vidas.

Um tema trágico, difícil de abordar sem entrar nos clichês, aqui é tratado de forma honesta. A câmera acompanha vários resgates e o faz de forma a demonstrar que é uma rotina, com o cuidado de tornar os pacientes anônimos e dar visibilidade aos procedimentos e à situação de crise que é o grande volume de chamadas de emergência com o mesmo motivo. Ao mesmo tempo, evidencia como o trato destes pacientes é feito sob a supervisão de pessoas experientes, nem sempre carinhosas como as mulheres profissionais e protagonistas do filme, mas certos e seguros – e que também precisam de apoio na vivência de suas funções. A voz aos usuários é dada também, em alguns momentos, pontuando parte de suas realidades, mas sempre com um olhar otimista, indicando o prazer da droga, mas também no que ela acarreta a curto prazo – já que o uso a longo prazo não existe.

Patricia Keller e Necia Freeman
A câmera é rápida, o diretor ganha intimidade com seus participantes e, por não ser um filme intimista e lidar com pessoas já acostumadas a estar sob pressão, parece não fazer diferença, não causar incômodo e nem provocar alterações da realidade. Este processo íntimo não é à toa, o tema é recorrente tanto da região, quanto da vida da diretora, moradora de uma cidade vizinha que passar por situação similar. Seu próximo filme está em produção e trata do processo de recuperação de alguns ex-usuários de heroína.

É interessante ver a Netflix abraçando filmes com motivos importantes e que provocam questões sobre cultura e comportamento. O que sinto falta neste filme – ou talvez que servisse de assunto para uma continuação – seria entender se essa questão do aumento do uso de heroína é local ou se é uma situação ainda mais grave, se é um retorno da droga a níveis alarmantes e nacional ou regional. O que se diz é que, por várias pessoas sofrerem lesões em decorrência de suas ocupações, acabam tendo o acesso à drogas analgésicas restringido e encontram a heroína no meio do caminho. Mas, quem é o provedor, de onde vem? Sendo uma questão local em uma cidade pequena, não há como combater?

Questões são a parte fácil de elaborar, claro, especialmente na realidade brasileira em que vivemos, o que não falta é pensamento prático, propostas e lógica. Seria interessante também entender como a polícia de Huntington trabalha, se há alguma parceria ou aliança com os bombeiros, de que forma acontecem as investigações para, pelo menos, dificultar a entrada ou produção da droga na cidade. Esta é outra história, entretanto, e é só mais uma das reflexões que filmes assim provocam. Seu titulo  não passa despercebido, as mulheres dominam a cena e a batalha contra o vício e as mortes provocadas por eles, salvando usuários, os mantendo em programas de reabilitação, redução de danos e combate ao vício. Heroínas sim, são Jan Rader, Patricia Keller e Necia Freeman, além de Elaine McMillion Sheldon, que dirige o filme e vivenciou situações como esta em sua cidade natal, o tornando fundamental. Vale cada minuto.
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O Carnaval de Salvador é a maior festa popular do mundo. Que não se diga tanto por estatísticas, mas por comoção, alegria e música que dominam parte da cidade uma semana por ano. Há quem se prepare financeiramente o ano inteiro para ela, há quem vá às ruas, de graça todos os anos para ver um espetáculo de estrelas da autêntica música popular baiana, brasileira, aquela que, ainda que você não goste, não vai lhe deixar parado. É dessa música e um pouco da festa que se trata Axé – Canto do povo de um lugar.

O início do filme já dá um aperto no peito, mas é de saudade. O carnavalesco soteropolitano – nativo, residente ou visitante – conhece as maiores músicas, os clássicos de 30, quarenta anos atrás. É como um grande reencontro, com o adendo de uma viagem pela história da música baiana, do carnaval e de seus fundadores. Mas há muito que dizer para além dos sucessos, falar da história da festa, de seus protagonistas – artistas e povo – da invenção dos trios elétricos e guitarras baianas, da música cantada e de todos os instrumentos que trazem a democratização da música na festa.
Luis Caldas - a primeira voz do Axé

Chico Kértesz reúne depoimentos de grandes expoentes da música baiana, traçando um panorama do passado que aqui começa com Armandinho e a família Macedo – os pais da guitarra baiana – e encerram com a decadência de alguns de seus mestres de cerimônia, fruto de uma indústria que visava o lucro e a ascensão meteórica de quem se destacava, mas não se organizava enquanto coletivo para mantê-los a longo prazo, isolando estrelas como se fossem competidores. Chacrinha foi um dos fomentadores destes músicos, levando a seu palco Luiz Caldas, Márcia Freire e outros nomes que a nova geração quase não conhece. Os artistas que vieram dos blocos e suas bandas correram para a carreira solo e outros os substituíram, como uma sucessão natural. A música dos blocos afro – Olodum, Timbalada, Ilê Aiyê, Muzenza – surge aqui com algum destaque juntamente com a reafirmação da cultura negra, mas, por alguma razão o diretor deixa passar um de seus grandes expoentes, os Filhos de Gandhy.

A montagem merece um prêmio, entretanto. Da trilha sonora – que aperta o peito de quem está longe – quanto às imagens de arquivo, há ampolas da festa para quem pouco a conhece e percebe-se inegavelmente a força dos ritmos se manifestando no povo. Não só vemos Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Margareth Menezes em início de carreira, conquistando com raça, qualidade e força seu espaço, como Netinho, Chiclete com Banana – com e sem Bell e suas discussões ‘familiares’ – a banda que mais arrastou multidões, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, já consagrados e ícones de cultura, enquanto participantes da festa. Há ainda a importância inquestionável da WR, a gravadora que lançou todos estes nomes, que garantiu seu espaço na cena musical nacional, sob o comando de Wesley Rangel. Psirico e Harmonia do Samba viriam dar sequência comum incremento no ritmo, assim como acontece agora com Baiana System, a banda que se recusou a participar do filme e a posterior chegada de outros estilos e ritmos musicais que hoje dividem espaço com o Axé.

Daniela Mercury - a rainha
Há alguns subtextos nisso, há uma questão política forte que rege a festa, há a indústria que privilegia quem acompanha a primeira, há a desigualdade social reforçada com as cordas e segregada por cordeiros. Há a própria diferenciação, dentro do que se entende como Axé, do gênero, basta ver aí a inclusão do pagode baiano do Gera Samba/ É o Tchan e Terra Samba, do eletrônico, sertanejo e pop. Sobra um questionamento se não valeria um olhar mais apurado sobre o assunto o ampliando para a festa em si, como um seriado com episódios mais detalhados dos temas, a história da WR, a cultura afro, os novos ritmos, a política que rege a indústria, a fundação e falência de alguns blocos, a ascensão e império de outros, as mortalhas e abadás, o carnaval sem cordas. Não seria mais apenas sobre a música, mas sobre todo o Carnaval.

A palavra Axé vem do Iorubá e por definição é energia presente em cada coisa, em cada ser. Nas religiões, é a energia sagrada dos deuses. É a melhor definição para o gênero híbrido que inaugura nosso carnaval, cujas raízes misturam todos os ritmos fundadores da cultura baiana, fundadores da cultura nacional e que foi rechaçado por um jornalista roqueiro, com o objetivo de transformar um termo simbólico em algo pejorativo. A palavra coube como uma luva, seu conceito alcançou o significado original, levantando com força sua origem africana, coerente com a cultura local, a forte percussão dos atabaques, a dança e o gestual.
Olodum arrastando sua multidão no Carnaval
Ainda que careça de aprofundamento nas problematizações aqui pinceladas e faltem artistas e manifestações importantes, o filme agrada quem ama a festa e o Axé. Ainda há muito que se dizer sobre o ritmo, sua história e seus artistas, é como se aqui víssemos a introdução do assunto. É uma coletânea ou talvez um pout-pourri do que houve de melhor na produção musical baiana do início dos anos 80 até hoje, com grandes imagens de arquivo, que nos sacodem nos assentos do cinema e nos fazem querer passar o próximo fevereiro em Salvador. É, por fim, um acalento para quem gosta e conhece e uma base para quem quer conhecer, sem preconceitos e com muita alegria um pouco do que move a cultura baiana e hoje, brasileira.

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Fará três anos no próximo fevereiro que estamos sem Eduardo Coutinho. Nosso documentarista favorito, um dos melhores que já houve no Brasil e no mundo, que conversava – ao invés de entrevistar – com seus sujeitos, protagonistas, convidados. Autor de Edifício Master – aquele que mostra a vida em um prédio de apartamentos de um cômodo em Copacabana, Cabra Marcado para Morrer – um dos filmes mais importantes de nosso cinema, histórico, proibido na ditadura e finalizado vinte anos depois e Canções – incrível e emocionante filme sobre as músicas populares brasileiras que marcaram as vidas de algumas (muitas) pessoas – para só citar três, Coutinho não extraía ou arrancava verdades, mas compartilhava histórias, relatos íntimos de seus brasileiros.

Este ano, o Brasil conheceu uma grande documentarista, na literatura. Svetlana Aleksiévitch, ucraniana, nascida em 1948 e laureada prêmio Nobel de literatura em 2015, começou a ter sua obra traduzida para nosso português, uma sorte e felicidade – e meus eternos agradecimentos a Lucas Simone, que traduziu direto do russo e à Companhia das Letras, que acaba de lançar o terceiro volume, O Fim do Homem Soviético.


Coutinho e Aleksiévitch poderiam ser parceiros de trabalho ou, no mínimo, grandes amigos. Essa senhora nascida na Ucrânia da União Soviética conversa com seus conterrâneos sobre temas caros às suas vidas, grandes assuntos de nossa história mundial. O primeiro que li, sobre o acidente nuclear em Tchernóbil em 1986 (Vozes de Tchernóbil), é um impressionante conjunto de relatos sobre a tragédia, a percepção do povo sobre ela, as estratégias do governo para omitir dados e estatísticas ao mundo, as trágicas consequências e, no meio disso tudo, um ideal socialista levado ao extremo, a cegueira e também a clarividência de quem viveu aquilo tudo.

O segundo, A Guerra não tem rosto de mulher é sobre a participação da mulher na Segunda Guerra Mundial entre 1941 e 1945. Este livro abre nossa percepção para um universo novo – eu, pelo menos, nunca havia pensado em uma perspectiva feminina para as guerras – e passamos a conhecer franco atiradoras, fuzileiras, paraquedistas, pilotas de avião, tanto quanto enfermeiras, médicas, cozinheiras, lavadeiras. É chocante da mesma forma que o anterior e também por não seguirmos ideais políticos como era feito décadas atrás, esta crença na necessidade do combate, na importância e orgulho em participar, na vontade política e, é claro, na própria natureza dolorosa e selvagem de uma guerra. Esses relatos, em sua maioria feito por mulheres, puxam também para o lado sensível do front, para o cuidado nos hospitais de campanhas e nos acampamentos, para a coragem absurda, camaradagem e parceria – sem omitir suas cruezas e crueldades.

Agora me encontro com o desmantelamento da União Soviética, já nos anos 1990 (O Fim do Homem Soviético), entendendo mais uma vez estas verdades individuais, a adaptação a uma nova realidade, a um novo sistema e economia, ao novo cotidiano das pessoas comuns, testemunhas, participantes que, se estivessem em um filme de ficção, seriam figurantes. Aqui, como em Coutinho, são protagonistas.


Svetlana entra na sala das pessoas ou em suas cozinhas e puxa uma cadeira. Ela inicia sua busca por alguns sujeitos e nessas pesquisas, outros aparecem e se convidam, querem dar seu testemunho, querem que seu parecer esteja ali, tão importante e fundamental quanto o da amiga, o do vizinho. São registros vivos da nossa História recente, que foi presente até pouco tempo atrás e cujos livros de história os contam priorizando datas, patentes e sobrenomes, sem o detalhe do olhar subjetivo, sem o brilho do sentimento. Quem dera a escritora tivesse uma câmera à mão e filmasse seus encontros – seria diferente, de fato, mas poderia ser tão bom quanto sua escrita.

A região do que era a União Soviética sempre me pareceu um imenso e nebuloso território que pouco se conhecia, não fossem as pinceladas da Guerra Fria na escola, alguns filmes, os estudos sobre cinema mundial, mas quase ou nenhuma literatura. A exceção, e para isso vale o parêntese, é o livro de John Steinbeck e Robert Capa, Um Diário Russo (Cosac Naify), em que Capa fotografa um tanto do que Steinbeck narra, o diário de viagens de dois imensos nomes da cultura mundial, no início da Guerra Fria, em 1947. Este olhar é do estrangeiro, de quem está habituado ao capitalismo, ao Ocidente, a outra forma de ver o mundo, suas polaridades e se confronta com uma realidade bastante diferente da anti-propaganda americana sobre aquela nação.

Agora um novo-velho mundo se abre e se apresenta da melhor forma, se descarnando, se entregando sob relatos ocultados por décadas de aprisionamento intelectual e político a essa voz  e ouvidos curiosos e acolhedores da escritora. Aleksiévitch se aproxima de Coutinho, caminha entre seus conterrâneos, revela os mais íntimos testemunhos, sobreviventes e viventes do mundo soviético. A voz, ainda que a guia seja a escritora, é dada para o outro e assim começamos a entender um pouco o que foi o pensamento, o modo de vida soviético, o ideal. É impossível parar de ler seus livros, seguimos com uma ânsia cada vez maior por novas histórias, por entrar na cozinha daquelas pessoas e dividir aquele café – ou chá se você preferir acompanhar a cultura local. Coutinho fazia o mesmo, mas sua caneta era a câmera.

Ainda não há um documentarista cineasta como Coutinho. Seus retratos do povo brasileiro a partir de suas conversas – mais do que entrevistas – descortinaram o maravilhoso universo das não celebridades, mostrando que as pessoas comuns são muito mais interessantes em qualquer aspecto do que aqueles modelos programados pela mídia. A diferença entre eles talvez resida na profundidade e no interesse, apenas. A profundidade em suas vozes, olhares e histórias, associada ao único interesse em dividir esse conhecimento que têm sobre si, sobre o tema que o diretor trouxe, ao contrário de um mercado, da valoração do corpo físico como suporte publicitário. Eduardo segue como uma perda irreparável e não há sequer substituto próximo; como não há outra Svetlana, a documentarista da palavra. Se fosse possível, sugeriria que ela fizesse uma série televisiva, se conseguisse convidar e deixar à vontade – como Coutinho fazia – seus protagonistas. É uma ideia de alguém carente por um cinema que não mais existe e que encontra na literatura dessa grande mulher um conforto. Seus livros são, sem dúvida, a melhor descoberta deste conturbado 2016.

Dois links importantes: a bibliografia de Svetlana e a filmografia de Coutinho. 
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Não é sobre música. Coragem, primeiro documentário de Sebastião Braga traz a história de Felipe de Luna e Diana Ligeti, aluno e professora de violoncelo na capital paulista. Ele, bolsista da EMESP – Escola de Música do Estado de São Paulo – vindo de um bairro de periferia e família humilde, ela musicista romena que se divide entre Paris e São Paulo – a partir do projeto da EMESP junto com o Conservatório de Paris – dando aulas e se apresentando em concertos. Com tanto em comum, vamos descobrindo aos poucos essa parceria e as vidas de nossos heróis.

Embora o filme seja permeado por concertos e um ótimo tratamento de captação de som, além da reprodução de composições clássicas e conhecidas que criam uma atmosfera interessante, a música é apenas o contexto, pano de fundo para o tema do filme. Como o título indica, é preciso ter Coragem para viver de música ou – ainda melhor – para fazer uma escolha difícil e persistir nela, por acreditar ser a única viável para a vida. Coragem também é a forma com que Diana sempre se despede de seus alunos, um acalento, força vital para enfrentar um ramo difícil sendo tão jovem.


Felipe fez sua mãe acreditar, aprender a gostar de sua vocação que considerava irritante pela repetição nos ensaios, sempre os mesmos trechos das músicas até a perfeição. Vivendo sozinha e criando dois filhos, fez o que pôde para sustenta-los mesmo quando lhes faltava o básico. O violoncelista em formação insistiu e, agora que enxerga uma saída profissional se desenhando em um futuro próximo, enfrenta a ansiedade, as expectativas e aquele medo guardado em nós, da grande mudança de vida. Esse vislumbre de sucesso não significa certeza – ainda que seja quase previsível devido à dedicação e talento – e a dúvida ele vence com os ensaios.

Diana já esteve em situação similar. Escolhida para ser bolsista em Paris na derrocada da União Soviética – antes a Romênia era parte da grande nação socialista sem abertura para o ocidente em qualquer aspecto, especialmente no cultural – lá fez sua vida, com a promessa de gerar oportunidades para jovens da mesma forma que conseguiu a sua. Um encontro não casual formou a nova dupla e juntos, traçam seus caminhos de diferentes aprendizados em reciprocidade.


Documentário de estreia de Sebastião Braga, o filme se sustenta bem, acompanhando as rotinas dos protagonistas em separado e quando se juntam, em um paralelo com quem já alcançou um patamar e um conforto com a música e aquele que está trilhando seu caminho, ainda que não seja iniciante. Cresce em quem assiste um orgulho ao ver Felipe galgar patamares através do próprio esforço e dedicação, como um aluno focado e persistente, que sabe o que quer e nos dá uma certeza de que alcançará. Vemos em sua família esse mesmo olhar que brilha ao ver uma saída positiva em um bairro carente e perigoso do subúrbio paulistano. Ao mesmo tempo, é interessante ver que o filme amplia a perspectiva histórica e de formação de Diana, que segue aprendendo e praticando, mesmo quando ensina a seus alunos. É um filme que trata da troca de ensinos, perseverança e um pouquinho de talento, item necessário, mas não fundamental ao aprimoramento de qualquer um que se queira artista.  
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Esta semana estreia nos cinemas Janis: little girl blue, a mais nova biografia sobre Janis Joplin, dirigida por Amy Berg. Será a terceira sobre uma cantora mulher, mais um ícone da música internacional em dois anos, se lembrarmos de What Happened, Miss Simone? (2015) e Amy (2015). Há claras semelhanças entre os filmes e é nítida, da mesma forma, sua relevância para a cultura musical, ainda que no trato de seus personagens haja alguns questionamentos.

Para quem acompanhou ou sabe um pouco da vida e obra de Janis Joplin, não há grandes surpresas. Os depoimentos dos familiares e amigos corroboram muito do que se encontra em uma pesquisa na internet e a graça sempre estará nas imagens em que nossa musa do blues aparece cantando, vivendo e falando, por isso a importância de vê-lo nos cinemas. A dosagem entre as falas de Janis e sobre Janis é um exemplo claro do documentário biográfico tradicional, em que se fala do outro, sobre o outro, acima da voz do outro e é irônico pensar que com estas três cantoras aconteceu o mesmo: se falou tanto sobre e acima delas, que pouco restou de suas (imensas) vozes para ouvirmos.
Janis e a Big Brother and the Holding Company
O filme é bom, traça o panorama linear de sua vida em uma cidade pequena, interior do Texas, onde qualquer diferença, por mínima que fosse, qualquer traço de personalidade que diferisse daquele padrão era tido como errado. Era aí que se encaixava a protagonista e quando a ouvimos sobre sua infância e adolescência, os relatos de seus irmãos e amigos sobre o assunto, é estarrecedor perceber tanto bullying por tão pouco e como isso a afetava. As provocações típicas da infância pareciam conter mais veneno do que o habitual, em uma clara tentativa de deslocá-la ainda mais, como uma Carrie pronta para um surto. Ao invés de fogo, virou poesia, música, solidão e amor. A grande surpresa, e por isso o acerto do filme, está nas cartas, lidas por Cat Power em sua voz deliciosa, dando a pausa e a sensibilidade corretas quando Janis tentava uma comunicação com os pais, com a família e seus amores. É pena não termos conhecimento do oposto, do que se recebia em troca, que justificasse a permanência da comunicação, mas através das falas de seus irmãos mais novos, já temos uma noção do comportamento e da relação entre eles.

Janis Joplin foi – e é, levando em conta que continuamos ouvindo sua voz – uma das maiores cantoras de todos os tempos e essa qualidade surgiu ainda muito nova, entrando nos vinte anos, em plena década de 60 quando se muda para São Francisco. Era uma libertação da opressão de sua cidade com seu comportamento machista e castrador – particularmente para a mulher – era o embrião da guerra do Vietnã, era a Guerra Fria, eram os hippies e a questão racial, era a experimentação das drogas, era o auge da cultura musical no país e isso tudo, em sua própria formação enquanto mulher com sua sexualidade também diversa de seus conterrâneos, enquanto criação de uma identidade e reconhecimento no mundo. Isso tudo com uma grande voz e talento natos, uma sensibilidade absurda e uma fome de viver. Essa sempre foi a impressão maior sobre a cantora que, como Amy Winehouse – não há como deixar de incluir Jimmy Hendrix e Jim Morrison – fechou seu ciclo cedo demais, por um acidente de percurso. O filme encerra e nos deixa com um aperto no peito de que tudo poderia ter dado certo, de que ela duraria mais tempo, de que sequer foi suicídio. Saímos com este aperto, como se uma vida de possíveis alegrias e grandes músicas e performances de uma mulher doce, inteligente, sensível e brilhante havia sido interrompida bruscamente.

Howard Alk fez a primeira biografia sobre a cantora em 1974, Janis – the way she was. Neste, ao contrário do filme de Amy Berg, não há qualquer depoimento que não o seu. Todos são tirados de entrevistas e shows e vemos muito de suas performances, as maiores já feitas, os melhores shows, outro deleite. Não há entrevistas fora de contexto e a duração delas é ainda maior, nos fazendo conhecer um pouco mais sobre nossa musa. É interessante perceber a diferença no trato das sequências e imagens, já que os dois filmes utilizam o mesmo arquivo. Em 74, o que vemos é resultado de uma grande influência do cinema direto, aquela forma francesa de filmar com a menor interferência possível (graças aos novos e leves equipamentos) cujos mestres seriam Edgar Morin e Jean Rouch. Nos Estados Unidos os destaques ficam para Rihard Leacock (inglês, mas com várias produções americanas), Robert Drew, Albert Maysles e D.A. Pennebaker. Este último acompanhou os músicos desta geração e fez um documentário sobre o primeiro festival de música em que Janis se apresentou com a Big Brother and the Holding Company em Monterey (1967) e é um dos entrevistados no novo filme, aos 90 anos. Ainda que o documentário anterior indicado ao Globo de Ouro se perca nos últimos minutos em uma apresentação fotográfica – homenagem póstuma recente – o fato de a conseguirmos ouvir em grandes dimensões é um bônus.

Não se pode dar voz aos mortos e com isso, o artifício do outro parece ser a solução para criar uma linha narrativa que preencha as lacunas da edição. Aqui esta intercalação acontece de tempos em tempos e por ver as mesmas sequências nos dois filmes, há que se perguntar sobre o volume do material coletado. Com registros de 50 anos atrás, talvez não houvesse diversidade suficiente, o que não causa prejuízo, já que o uso das conversas com a Kozmic Blues Band e a Big Brother and the Holding Company, cumprem um pouco do prometido. Além deles, outros homens passaram por sua vida e deixaram sua contribuição ao filme, como seu último grande amor – este, de fato, lhe dando o devido crédito. Não vemos muito sobre os relacionamentos de Janis com mulheres, muito sutilmente parece não se dar a importância ou espaço para estes envolvimentos. Outros depoimentos soam ácidos a ouvidos mais sensíveis, não dando a correta dimensão ao relatar possíveis encontros com a cantora, não se sabe por mágoa ou pouco caso. Não fica claro o porquê, além de criar um incômodo em quem assiste com mais atenção.
Janis e a Kozmic Blues Band
Não há como se definir de que forma o entrevistado falará sobre seu objeto, mas objetificação em si seria o problema maior. No fim, ainda que seja uma obra gostosa de ver, há menos música e performance do que o esperado, à exceção da magnífica cena em que a banda discute no estúdio as variações sobre Summertime, vemos suas interpretações e temos uma visão da cantora como uma profissional que entende de seu trabalho, que sabe o que busca e a melhor forma de fazê-lo. É de cenas assim que carece a obra, tanto quanto imagens da cantora com outros artistas, como vemos uma pincelada em Woodstock e em um trem, a caminho de um festival no Canadá, com o Grateful Dead. Uma tentativa tardia e confusa está nos créditos finais, em depoimentos curtos que não aparecem durante o filme – e entende-se o porquê – mas que de alguma forma, funcionam como uma curiosidade, como um extra do dvd.

Enquanto o filme de 74 parece ser uma colagem de registros quase brutos de episódios da vida da cantora, o Little Girl é coeso em sua proposta. Há o equilíbrio narrativo e o filme funciona como os demais, sobre Amy e Nina Simone, resgatando nosso amor por estes ícones, nos fazendo buscar em nossos arquivos o momento em que as conhecemos e partilhamos da experiência transformadora que é ouvi-las, aqui até de forma ainda mais sensível do que nos das outras cantoras. De alguma maneira, há sempre mais para descobrir sobre estas grandes mulheres e suas personalidades complexas, para além das imagens de mídia. Este filme ensaia isso e faz bem, ainda que se comprometa em alguns momentos, manteve um cuidado em não classificá-la como uma garota problema, em não queimar sua imagem como as de uma possível corrosão física por uso de drogas, como apresentadas em Amy e um pouco menos em Nina, mas buscando uma sensibilidade e sua subjetividade nas cartas. É evidente que há de se fazer um comparativo com as biografias de artistas masculinos e entender do que se falava sobre eles, se se pontuam envolvimentos amorosos questões pessoais para além do talento. Em filmes sobre o outro, é fácil escavar o passado, difícil é construir uma dimensão humana, tridimensional e dar uma percepção mais ampla do que realmente importa para o público: sua qualidade, conhecimento e sensibilidade artística. Aqui, saímos com um pouco mais de Janis Joplin, com vontade de retomar seus discos e capturar uma fração dessa imensa sensibilidade e blues que levava dentro de si e que nos rasga e alenta por dentro com sua inigualável voz.


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Tati Reuter Ferreira

Baiana, curadora de projetos audiovisuais, escritora e crítica de cinema. Vivo de café, livros, cinema, viagens e praia. E Pituca.


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