Axé - canto do povo de um lugar
O
Carnaval de Salvador é a maior festa popular do mundo. Que não se diga tanto
por estatísticas, mas por comoção, alegria e música que dominam parte da cidade
uma semana por ano. Há quem se prepare financeiramente o ano inteiro para ela,
há quem vá às ruas, de graça todos os anos para ver um espetáculo de estrelas
da autêntica música popular baiana, brasileira, aquela que, ainda que você não
goste, não vai lhe deixar parado. É dessa música e um pouco da festa que se
trata Axé – Canto do povo de um lugar.
O
início do filme já dá um aperto no peito, mas é de saudade. O carnavalesco
soteropolitano – nativo, residente ou visitante – conhece as maiores músicas,
os clássicos de 30, quarenta anos atrás. É como um grande reencontro, com o
adendo de uma viagem pela história da música baiana, do carnaval e de seus
fundadores. Mas há muito que dizer para além dos sucessos, falar
da história da festa, de seus protagonistas – artistas e povo – da invenção dos
trios elétricos e guitarras baianas, da música cantada e de todos os
instrumentos que trazem a democratização da música na festa.
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Luis Caldas - a primeira voz do Axé |
Chico
Kértesz reúne depoimentos de grandes expoentes da música baiana, traçando um
panorama do passado que aqui começa com Armandinho e a família Macedo – os pais
da guitarra baiana – e encerram com a decadência de alguns de seus mestres de
cerimônia, fruto de uma indústria que visava o lucro e a ascensão meteórica de
quem se destacava, mas não se organizava enquanto coletivo para mantê-los a
longo prazo, isolando estrelas como se fossem competidores. Chacrinha foi um
dos fomentadores destes músicos, levando a seu palco Luiz Caldas, Márcia Freire
e outros nomes que a nova geração quase não conhece. Os artistas que vieram dos
blocos e suas bandas correram para a carreira solo e outros os substituíram, como
uma sucessão natural. A música dos blocos afro – Olodum, Timbalada, Ilê Aiyê,
Muzenza – surge aqui com algum destaque juntamente com a reafirmação da cultura
negra, mas, por alguma razão o diretor deixa passar um de seus grandes
expoentes, os Filhos de Gandhy.
A
montagem merece um prêmio, entretanto. Da trilha sonora – que aperta o peito de
quem está longe – quanto às imagens de arquivo, há ampolas da festa para quem
pouco a conhece e percebe-se inegavelmente a força dos ritmos se manifestando
no povo. Não só vemos Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Margareth Menezes em
início de carreira, conquistando com raça, qualidade e força seu espaço, como Netinho,
Chiclete com Banana – com e sem Bell e suas discussões ‘familiares’ – a banda
que mais arrastou multidões, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, já consagrados
e ícones de cultura, enquanto participantes da festa. Há ainda a importância
inquestionável da WR, a gravadora que lançou todos estes nomes, que garantiu
seu espaço na cena musical nacional, sob o comando de Wesley Rangel. Psirico e
Harmonia do Samba viriam dar sequência comum incremento no ritmo, assim como acontece
agora com Baiana System, a banda que se recusou a participar do filme e a
posterior chegada de outros estilos e ritmos musicais que hoje dividem espaço
com o Axé.
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Daniela Mercury - a rainha |
Há
alguns subtextos nisso, há uma questão política forte que rege a festa, há a
indústria que privilegia quem acompanha a primeira, há a desigualdade social reforçada
com as cordas e segregada por cordeiros. Há a própria diferenciação, dentro do
que se entende como Axé, do gênero, basta ver aí a inclusão do pagode baiano do
Gera Samba/ É o Tchan e Terra Samba, do eletrônico, sertanejo e pop. Sobra um
questionamento se não valeria um olhar mais apurado sobre o assunto o ampliando
para a festa em si, como um seriado com episódios mais detalhados dos temas, a
história da WR, a cultura afro, os novos ritmos, a política que rege a
indústria, a fundação e falência de alguns blocos, a ascensão e império de
outros, as mortalhas e abadás, o carnaval sem cordas. Não seria mais apenas
sobre a música, mas sobre todo o Carnaval.
A
palavra Axé vem do Iorubá e por definição é energia presente em cada coisa, em
cada ser. Nas religiões, é a energia sagrada dos deuses. É a melhor definição
para o gênero híbrido que inaugura nosso carnaval, cujas raízes misturam todos
os ritmos fundadores da cultura baiana, fundadores da cultura nacional e que
foi rechaçado por um jornalista roqueiro, com o objetivo de transformar um
termo simbólico em algo pejorativo. A palavra coube como uma luva, seu conceito
alcançou o significado original, levantando com força sua origem africana,
coerente com a cultura local, a forte percussão dos atabaques, a dança e o
gestual.
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Olodum arrastando sua multidão no Carnaval |
Ainda
que careça de aprofundamento nas problematizações aqui pinceladas e faltem
artistas e manifestações importantes, o filme agrada quem ama a festa e o Axé.
Ainda há muito que se dizer sobre o ritmo, sua história e seus artistas, é como
se aqui víssemos a introdução do assunto. É uma coletânea ou talvez um pout-pourri do que houve de melhor na
produção musical baiana do início dos anos 80 até hoje, com grandes imagens de
arquivo, que nos sacodem nos assentos do cinema e nos fazem querer passar o
próximo fevereiro em Salvador. É, por fim, um acalento para quem gosta e
conhece e uma base para quem quer conhecer, sem preconceitos e com muita
alegria um pouco do que move a cultura baiana e hoje, brasileira.
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