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Café: extra-forte


futuro ancestral, ailton krenak

Há determinados livros em que é preciso voltar e não demoramos a perceber quais são eles. Assim que começamos as primeiras páginas, já percebemos algo importante que nos toma de vez. Futuro Ancestral, de Ailton Krenak, com esse título tão lindo quanto profundo, é um deles.

Aílton Krenak é um autor conhecido por seu trabalho no campo dos direitos indígenas e que se torna, a cada dia, mais relevante para todos. Com a crise indígena acentuada no Governo Bolsonaro, especialmente na Terra Indígena Yanomami, ele torna-se não apenas importante, como urgente. Em seus textos, Krenak traz uma dimensão da natureza de quem a vive de perto e em profundidade. O ambientalista faz filosofia com uma linguagem acessível, direta e poética. Ler seus textos é encontrar uma roda de conversa ampla, empática e crítica sobre nós mesmos enquanto humanos e brasileiros, e sobre como ainda desconhecemos muito do que somos feitos.

Em Futuro Ancestral, editado pela Companhia das Letras, encontramos 5 textos que tratam do nosso comportamento no mundo. Da Pandemia à educação das crianças e do respeito às idades e saberes, do respeito à própria infância, fala também da matança dos rios e das construções das cidades que insistem em separar 'meio ambiente' de 'civilização', trata ainda da tragédia de Mariana e mais um tanto de coisas. Os textos estão conectados com essa ideia de futuro ancestral talhado no presente, uma ideia de que o tempo é o fluxo contínuo de trocas entre gerações, como ele cita a vida das crianças Krenak, que

anseiam por serem antigas. Isso porque, nas humanidades em que as crianças ainda têm a liberdade e a autonomia de aspirar mundos, elas valorizam muito os velhos. As pessoas antigas têm a habilitação de quem passou por várias etapas da experiência de viver. São os contadores de histórias, os que ensinam as medicinas, a arte, os fundamentos de tudo que é relevante para ter uma boa vida. É o que os quéchuas chamam de sumak kawsay e que foi traduzido para o castelhano como bienvivir, ou bem viver, em português. 

A conexão que se faz entre o jovem e o ancião é a de sabedoria de vida, conhecimento e respeito. O idoso é quem passou pela experiência de viver e, em vez de ser descartado como se faz na urbanidade, é reverenciado, é um exemplo a ser seguido e é quem compartilha conhecimentos. Esse trecho, quase ao fim do livro encontra ressonância em sua abertura, quase poesia em suas primeiras páginas:

Nesta invocação do tempo ancestral, vejo um grupo de sete ou oito meninos remando numa canoa: 

Os meninos remavam de maneira compassada, todos tocavam o remo na superfície da água com muita calma e harmonia: estavam exercitando a infância deles no sentido que o seu povo, os Yudjá, chamam de se aproximar da antiguidade. Um deles, mais velho, que estava verbalizando a experiência, falou: "Nossos pais dizem que nós já estamos chegando perto de como era antigamente".

Eu achei tão bonito que aqueles meninos ansiassem por alguma coisa que os seus antepassados haviam ensinado, e tão belo quanto que a valorizassem no instante presente. Esses meninos que vejo em minha memória não estão correndo atrás de uma ideia prospectiva do tempo nem de algo que está em algum outro canto, mas do que vai acontecer exatamente aqui, neste lugar ancestral que é seu território, dentro dos rios.

foto de ailton krenak ambientalista
Ailton Krenak
Quando começamos a leitura, encontramos o trecho e só ele já nos faz respirar melhor. Krenak traz formas de ver o mundo e de entender que é preciso reconhecer riquezas, tradições e o respeito pela natureza como algo intrínseco à humanidade e não à parte dela. Suas reflexões sobre urbanidade, cidadania e canalização dos rios, um contrassenso e o oposto do progresso real são precisas e urgentes. Aqui em Salvador, Bahia, por exemplo, há um grande volume de obras públicas, como a construção de avenidas e viadutos que acabam com a vegetação e ampliam a canalização dos rios, os tornando esgotos ou tapando seu acesso à luz, como para esconder poeira embaixo de um tapete. Os rios não podem ser os problemas das cidades, eles já existiam quando os assentamentos urbanos tomaram posse e é por eles que as cidades passaram a existir naquele local. Os alagamentos e enchentes não acontecem por causa dos rios, mas por um sistema de esgotamento ausente e despreparado, em um planejamento urbano ineficiente, para dizer o mínimo. A natureza sempre indica o que estamos fazendo errado de forma explícita, e é esse o ensinamento que precisamos.

Para além das ideias base, o livro é uma delícia. É dos que deveria despontar em provas de concursos, vestibulares, ENEM. È preciso educar com livros como esse, levar para a mesa de bar dos amigos, de jantar das famílias, de lanche nas escolas. Aqui em casa, o livrinho segue com tantas orelhas marcadas, que quase dobrou sua fina espessura. É muito o que reler e refletir, dividir com quem quiser, e como ele nos relembra:

Nossa sociabilidade tem que ser repensada para além dos seres humanos, tem que incluir abelhas, tatus, baleias, golfinhos. Meus grandes mestres da vida são uma constelação de seres - humanos e não humano.

Livro: Futuro Ancestral, de Ailton Krenak
Companhia das Letras, 2022. 130 páginas.

***
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Ano passado, reencontrei uma colega da época de escola que não via, possivelmente, desde a época da escola, no final dos anos 90. Maria Cecília mora fora do país e vínhamos nos acompanhando pelas redes sociais, estreitando uma amizade atrasada mas muito bem vinda neste momento de nossas vidas. Fomos a uma livraria, trocamos figurinhas literárias e ela me indicou este livro: Kim Jiyoung, nascida em 1982, de Cho Nam-Joo.

livro de kim-jiyoung, nascida em 1982, de cho nam-joo, pela editora intrínseca
Kim Jiyoung, nascida em 1982. Cho Nam-Joo, Editora Intrínseca
O livro trata de uma mulher, como o título indica, nascida em 1982 na Coréia do Sul, mãe de uma criança e casada. Ela largou o trabalho para ter a filha e ser dona de casa, um fato comum no país. O relato já começa com uma transformação da protagonista, narrado na terceira pessoa. Kim Jiyoung parece estar tendo algum tipo de dissociação, muda de personalidade subitamente quando conversa com o marido ou familiares e se posiciona como nunca havia feito antes. A tendência, na Coréia do Sul, é que as mulheres tenham uma postura mais submissa e devotada à família, a aceitarem o pesado fardo da criação quase unilateral dos filhos e assumirem toda a responsabilidade dos cuidados da casa e das tradições familiares.

Entretanto, Kim Jiyoung cansou. De alguma maneira, seu comportamento estranho, o esgotamento do sujeito, é percebido nitidamente sob a forma de um desequilíbrio mental e o marido foi sozinho ao psiquiatra falar sobre a esposa e tratamentos possíveis. Entenda aqui, ele foi sem ela ao psiquiatra, porque a ela não importa saber de si.

O livro é excepcional e a vontade é de sair descortinando ele todo por aqui, conversando sobre cada situação que se apresenta, inclusive sobre a escolha narrativa que se explicará mais adiante - o fato do narrador não ser a própria Kim Jiyoung. Nada disso é à toa, o que torna a obra curta demais para sua qualidade.

Falar sobre o papel da mulher, em quase qualquer sociedade, é dialogar sobre imposições do patriarcado e suas tentativas de rompimento dessa estrutura arcaica. O livro encontra um caminho interessante porque traz um exemplo que está na ordem do ‘comum’ e envereda pelo fantástico com as ‘personalidades’ apresentadas da protagonista. A justificativa para esta solução é clara, marca a ausência de subjetividade imposta às mulheres daquela cultura para serem cumpridoras de tarefas domésticas, executoras apenas, sem reflexão, vontades, reclamações, afeto. Então, a partir do momento que Kim Jiyoung deixa de ser quem é para aquele microcosmo - e talvez pra si, ela assume as personalidades de todas as mulheres.

A obra não se restringe ao fato que abre sua história. Ela cria um panorama para que entendamos como é a vida de Kim Jiyoung, de seu nascimento ao momento em que tudo acontece. Assim, acompanhamos um relato que trata do seu nascimento, da situação familiar, dos privilégios do filho homem, das atribuições dela enquanto mulher, da adolescência, dos assédios e da perpetuação dos privilégios masculinos. Além disso, inclui dados estatísticos de comportamento e sociedade, criando quadro realista do que é ser mulher na Coréia do Sul dos anos 1980 para frente.

O livro é baseado na vida da autora, Cho Nam-Joo, que deixou o trabalho para se tornar mãe, e seus um milhão de exemplares vendidos no mundo em 18 idiomas atestam sua relevância e como ela se comunica em diferentes culturas que, não coincidentemente, abraçam algumas características semelhantes de comportamento e sociedade. Em pouco mais de 170 páginas temos tudo isso com um final excepcional. Boa leitura!


Livro: Kim Jiypung. nascida em 1982, de Cho Nam-Joo
Editora Intrínseca, 2022. 172 páginas.
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Quem me conhece um pouquinho sabe que eu evito, como o diabo foge da cruz ou o vampiro da luz, filmes de drama, especialmente os que envolvam doenças. Meu pobre coração não aguenta, sofro demais, provavelmente por ter visto os dramas dos anos 90 que minha mãe me obrigava. Talvez até já tenha comentado sobre isso por aqui, mas hoje, justamente, me aconteceu isso, estando sozinha e quase sem perceber. Não me arrependi.


Robert Downey Jr., esse imenso ator que muita gente conhece, é filho de um diretor de cinema independente, Robert Downey Sr.. Acompanhando a idade avançada do pai e suas questões de saúde, Jr., resolve fazer filme com e sobre o Sr., em uma combinação de olhares dos dois artistas.

Fui pega de surpresa, vi o teaser na Netflix, é leve e tem um humor gostoso que me tomou de vez, nem li a sinopse. Ao mesmo tempo, ele traz um dos grandes temas que gosto de ler, ver, conhecer, conviver: a família. Documentários sobre famílias ou pessoas no contexto familiar podem parecer egocêntricos, mas há algo que sempre nos aproxima deles. Acredito que sejam as excentricidades, as experiências de vida, as histórias das famílias e, acho que mais do que tudo, essa intimidade e ternura genuínas que costumam abraçar obras do gênero. Neste caso, um filme de um grande ator sobre um grande diretor, de início, pode parecer distante de nossa realidade, mas é muito mais próximo de nós do que imaginaríamos.

Aqui vemos Robert Downey Sr., o diretor de comédias underground, um artista que eu não conhecia e que vou buscar seus filmes. Os trechos deles aparecem e contêm um humor ácido, crítico e, ao mesmo tempo, inocente que percorre a família, o mesmo que me pegou no teaser. Vemos o interesse e intenção de Robert Downey Jr. em se aproximar ainda mais do pai, com o carinho, a paciência e muito amor, enquanto se mostra como filho e também pai ao trazer seu filho para a câmera. É possível ver também, como um corte, uma tentativa de evitar expressões maiores de dor pela perda iminente, ainda que não tenha se imiscuído delas. Ele trouxe o sentimento na forma de nostalgia e em reflexões leves e que cabem a todos nós e, talvez por isso, o diretor que os acompanhou tenha escolhido o preto-e-branco na fotografia.


À medida que o filme avançava, eu ficava dividida entre estar amando assistí-lo e sofrer ao já prever um pouco o final, como se fizesse parte daquela narrativa. Esse é o grande trunfo das boas histórias, elas nos transportam e nos fazem viver outros mundos, pessoas, experiências. Fiquei presa, talvez pela empatia e pela certeza de que todos teremos um fim, como os próprios filmes. 

O fato é: Robert Downey Jr. traz uma obra leve, terna e com muita vida, como se o próprio ator quisesse revisitar partes dele no futuro, rememorando a história de seu pai e de seu filho naquele período, como um acalento. Além da questão íntima e familiar, o filme nos enriquece mostrando a grandiosidade de uma cinematografia que poucos conhecem, mas cujas referências e influências se veem nos filmes de estúdio. Não é um filme sobre cinema, mas, nesta família, ele está em todo lugar, tentando dar conta de partes de uma vida infinita, com suas tragédias e comédias e nos estimulando a conhecer mais sobre as obras destes extraordinários homens.

Uma lindeza para fechar esse fim de semana.

***

O Café está em constante e parcimoniosa atualização. Em breve, volto com novidades. Para contribuir e deixar este lugar ainda mais aconchegante, dá uma passada no buy me a coffee. Por muito pouco, se faz muita diferença ;)
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Chegamos ao final da série 1899, cujo início comentei no post anterior. Agora, além de falar sobre a produção, surgiu uma polêmica para discutirmos: a denúncia de um suposto plágio da obra de uma autora brasileira, Mary Cagnin, que escreveu Black Silence, um quadrinho que apresenta similaridades com a produção da Netflix. E sim, parece improvável, mas não é impossível de acontecer.

poster-1899-netflix

Antes de entrarmos na polêmica, vamos por partes. A série de fato é muito boa. A ideia aqui não é trazer spoilers, mas dar uma ideia do todo, respondendo à pergunta de sempre: vale a pena assistir? Sim, vale. A série é menos sombria do que Dark, o roteiro tem algumas barrigas - cenas que poderiam ser encurtadas, momentos da narrativa que alongam os episódios e não são fundamentais - mas, suas reviravoltas a partir do 4 episódio são interessantes. Quem não leu nada sobre a série (recomendo que siga assim), não consegue vislumbrar, no início, o final que esta temporada terá. 

É interessante ver a construção narrativa e entender como os criadores conseguiram esticar a trama para o alcance e transformação que tem. A partir de um ponto, eu comecei a visualizar parte da ideia final da obra, sem saber ainda como seria sua conclusão e, de uma maneira, ela me lembrou Westworld. Esse é o máximo de informações que darei para garantir a surpresa do espectador. 

Para além dos spoilers, é muito bacana perceber que, como na série anterior dos mesmos criadores, aqui há também muito simbolismo. É parte da graça da série quebrarmos a cabeça para entender ou nos anteciparmos sobre os destinos dos personagens. Então trago alguns, como a pirâmide, um elemento histórico e místico importante para nossa história mundial, cuja função é dar morada 'eterna' aos antigos faraós do Egito. Em seguida, os nomes dos navios: Prometeus e Cérbero, dois personagens importantes da mitologia grega. O primeiro roubou o fogo divino para dar aos humanos e, como castigo também divino, foi amarrado a uma pedra, e todos os dias uma águia comia seu fígado, que se regenerava para um novo ataque no dia seguinte por toda a eternidade. O segundo, Cérbero, um enorme cão de 3 cabeças que guarda a entrada do reino de Hades, o reino dos mortos, de onde nenhuma alma sai e os vivos que ali adentram, são despedaçados em seguida. Além disso, tem essa entrada de sonhos / realidades paralelas, que se remete tanto à física dos buracos de minhoca quanto às interpretações de sonhos da psicanálise - ou seja - tem muita diversão para quem gosta de enigmas de todo tipo.

O enorme e ótimo elenco de 1899
O fato é: os atores e a trama se sustentam até o fim, mas eu esperava - e isso é pessoal - que fossem aparecer mais referências ao século XIX como pontuei no texto anterior. É o penúltimo ano do século, de um século com tantas transformações em diversas áreas. 1899 funciona mais como um cenário do que como um motivo real para o ser título da obra. Pelo menos, nesta primeira temporada é o que dá a entender. Caso encontrem outros motivos que tragam mais relevância ao ano na série, mandem pra mim por aqui ou no instagram do Café: extra-forte pra gente discutir.

Agora sim, falaremos sobre o plágio. O mundo recebeu com surpresa a afirmação da autora brasileira Mary Cagnin em sua conta no twitter, acusando os criadores de 1899 de plágio. O plágio, como sabemos, é a reprodução total ou parcial de um conteúdo produzido de uma pessoa por outra sem sua autorização e/ou conhecimento. Ela afirma que há na série vários elementos e ideias iguais ou muito similares aos de sua criação, citando a pirâmide, escritas em código e outros. 

mary-cagnin-black-silence
Mary Cagnin
Acabei de ler Black Silence - a autora disponibilizou a obra para o público, objeto do suposto plágio - vou indicar sempre que é suposto porque não é da minha competência dar esse atestado - e os elementos que ela cita, em parte, estão lá mesmo. Não sabemos se é uma estranha coincidência (pirâmides são referências muito usadas em ficção científica, assim como escritas em código), como também vale afirmar que as narrativas das duas obras são bem diferentes. O roteirista e criador da série, Baran Bo Odar se manifestou, indicando a impossibilidade do plágio em sua conta no instagram e disse ter tentado contato com a autora brasileira para que se entendessem.

A polêmica funcionou como um chamariz para as duas obras, que agora entrarão com mais uma camada no crivo do público, que se tornará o avaliador da suposta cópia. Cabe aos advogados especializados em direitos autorais essa matemática sensível, mas, da forma como foi posta a questão, me pareceu que o plágio seria mais escancarado, como o de estudantes que copiam textos de mestres, e identificamos logo de cara o problema. No caso da série e do quadrinho, alguns elementos estão lá, mas as histórias me pareceram bastante distintas de forma geral, tanto que não sei se cabe a ação. Mas, como disse anteriormente, é deixar com os especialistas.

comparações entre a série 1899 e o quadrinho Black Silence.
1899 à esquerda, Black Silence à direita.
De todo jeito, vamos aguardar o provável e ótimo retorno financeiro desta primeira temporada de 1899, aquecido não apenas pela qualidade da obra, como pela polêmica que se fez em torno dela. Casos assim acabam servindo à curiosidade do público, que quer ser parte da trama, nem que seja apenas por conhecimento, para a boa conversa na mesa do bar ou tomando um café. Acho que o plágio é uma realidade em qualquer meio e, neste caso específico, há muitas nuances a avaliar antes de se atestar algo tão grave. A série segue valendo a pena, a temporada de debates está aberta e quem quiser falar sobre simbolismos, sobre as qualidades e defeitos da obra, expectativas e interpretações com e sem spoilers, estou por aqui com meu café quentinho, esperando a visita. :)

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A nova série da Netflix, 1899, mostra já nos primeiros minutos ao que veio. Com uma construção minuciosa como a que vimos em Dark, estabelece de cara o clima do que estaremos a ver, assim como um universo à parte, que nos é, simultaneamente, estranho e familiar.

1899-netflix-serie

Quando o espectador assiste uma produção audiovisual, nem sempre se atenta à enormidade que é a transmutação de texto em imagem. Ao escrever isso, vem à mente aquela frase clássica da fotografia, de que ela vale mais do que mil palavras. No caso da construção cinematográfica, é mais realista dizer que para uma imagem - cena - se construir, precisa-se de muito mais do que mil palavras.

1899 faz isso em sua abertura. Com uma voz off (onde o narrador não aparece), vemos imagens sombrias e belas de natureza poderosa, céu e mar. A sinopse conta que esta é a história de passageiros de diferentes nacionalidades em um navio que segue da Europa para os Estados Unidos. No meio da viagem, se deparam com sinais de que outro navio, desaparecido meses atrás, está próximo e vão ao seu resgate. No texto narrado, como em um dos temas de Dark, falamos do elemento humano e da crença na ciência, sobrepondo o cérebro (pensamento e razão) à imensidão e (in)finitude do universo (mistério e caos). Na sequência, encontramos a protagonista: uma neurologista que fez algum tipo de tratamento de saúde mental à revelia antes do embarque, uma mulher de ciência que já foi tida como louca. Voltando aos minutos iniciais, o som é um elemento à parte, tão ou mais espetacular do que as imagens que absorvemos com sofreguidão: a combinação de efeitos sonoros com a qualidade da voz e da trilha, insere a tensão que descortinaremos em breve. Mais uma vez lembraremos de Dark, a série que traz a angústia como ponto forte, imensamente trabalhada no som e na fotografia. Mas, por que fazer desta forma?

poster 1899, nova série netflix.

Em 1899, nada é gratuito. A construção visual e sonora é preconizada lá atrás, nas palavras do roteiro. Ali, se visualiza a tensão, com indicações precisas sobre o que veremos e ouviremos, assim como suas metáforas. O cinema é um trabalho de criação artística coletiva e o que houver de indicações em texto, será compartilhado com as equipes que trarão ainda mais elementos criativos, darão profundidade e uma forma concreta ao que o roteirista pressupôs inicialmente. Esse conjunto de ideias se traduz em uma 'criação de clima' que suporta o universo inventado, elementos que dão contexto e plausibilidade à história que assistiremos. E nisso, os criadores de Dark, os mesmos de 1899 - por isso as menções acima - são brilhantes.

O que mais impressiona, e estamos no início da série, é a construção desse mundo e a forma como ela nos convida, imediatamente, a fazer parte dele. O mistério é a chave mestra, o clima sombrio, as apresentações de personagens dando a entender que cada um traz um problema, a adaptação de época com questões sobre medicina, filosofia, gênero e comportamento, e essa indicação, mais uma vez, de se tratar de algo que descobriremos juntos: espectadores e personagens. Em menos de meia hora do primeiro episódio, conhecemos os principais envolvidos na trama, figuras diversas e misteriosas que farão um amálgama das relações humanas dentro de um universo particular - um navio - e fantástico - o mistério do navio afundado, considerando o chamariz do sobrenatural versus a ciência, como a medicina do cérebro (que fatalmente se mostrará como um novo mistério, a mente humana) em uma protagonista desacreditada. É muita informação para pouco tempo de história, mas tudo parece fazer sentido e embarcamos nessa jornada com facilidade e questões em aberto à espera de solução.

elenco principal de 1899, série da netflix

Vamos seguir adiante com 1899, esperando desdobramentos interessantes, suspense, personagens complexos e mistérios para solucionarmos, como os grandes filmes e séries. Pensando que a série se passa no finzinho do século XIX, vale relembrar o que acontecia na época e como as revoluções em todas as áreas do conhecimento podem se fazer presentes aqui, de Darwin a Freud, de Pasteur a Dostoiévski, Marie Curie e Van Gogh, da evolução da fotografia e do nascimento do cinema. É uma produção para todos assistirem (exceto menores de 16 anos) e perceberem a riqueza de uma construção cinematográfica excepcional em muitos sentidos. Pelo menos, até agora. 

No avançar da série, volto aqui para falarmos mais sobre ela.  
Aguardem cenas dos próximos capítulos. =)

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O prêmio Nobel de Literatura costuma me instigar a conhecer os autores ali consagrados. Alguns são historicamente conhecidos em nosso país, em sua grande maioria, homens. Minha curiosidade aumenta quando o prêmio é dado a uma mulher. Por um conceito ou preconceito, tendo a achar que as mulheres ganhadoras do Nobel de Literatura são ainda maiores do que os homens fotografados por ali, levando em conta que ultrapassaram o gênero que ocupa quase todo o cânone e historicamente por eles selecionado. De uma forma ou de outra, acabo de ler O Lugar, de Annie Ernaux, a vencedora do prêmio deste ano e é dessa descoberta que vamos falar.

annie-ernaux-nobel-o-lugar

Fui investigar os livros da autora e, sem ler muito sobre, peguei este O Lugar. A minha alegria veio imediatamente quando entendi o teor de suas obras. Annie fala sobre memórias, família, história. São temas que me atraem naturalmente, por eu mesma carregar essa vontade de conhecer famílias, histórias de vida, possibilidades de viver onde quer que se esteja. Quando um autor puxa esse assunto, especialmente com a qualidade literária que ela traz, é como se entrássemos naquela família, vivêssemos parte daqueles sentimentos e, mesmo se tratando de uma realidade que nos é distante de muitas maneiras, nos aproximamos dela com o que temos fundamentalmente em comum: nossa humanidade. 
"Busco a figura do meu pai na maneira como as pessoas se sentam e se entediam nas salas de espera, como falam com seus filhos, como se despedem umas das outras na plataforma da estação de trem." 

Em O Lugar, Annie me levou para um território assombroso, dos que eu mais temo na vida: a morte. Ela conta a história de seu pai, do homem que foi, do tempo que viveu, das lutas que batalhou, mas não num tom fúnebre, apesar de sabermos seu fim logo no início. A autora consegue se equilibrar no que parece ser uma dor, uma saudade de algo que se perdeu e de uma forma de viver, como ela coloca, da vida das 'pessoas simples'. E é aí que ela se torna magistral. As pessoas simples são seus pais, os moradores da pequena cidade onde passou a infância e adolescência, os operários, as pessoas não burguesas, as pessoas que não vivem de luxo ou envolvidas em arte, música, literatura, cinema, os intelectuais - o que para o pai de Annie, eram a mesma coisa, dada a distância entre esses mundos.

Foto do Kindle aberto na capa do livro de Annie Ernaux, O lugar.
O lugar, de Annie Ernaux

São pessoas de costumes comuns, sem soberba, como muitos brasileiros, como os pais dos meus avós, como meus avós, em grande parte. São pessoas que batalharam para que seus filhos pudessem ter uma vida mais confortável e o acesso à melhor educação possível. Que vivessem com privilégios que eles mesmos não tiveram, criando oportunidades para que os mais novos habitassem outra realidade que, por fim, triste e ironicamente, determinava um afastamento entre todos. Essa separação é ainda mais evidente quando a autora se casa com um rapaz de sua vida adulta, distante fisicamente e socialmente de seus pais, agudizando as diferenças. Isso se percebe especialmente no cuidado embaraçado dos pais com os visitantes, como se o uso de polissílabos e citações daqueles os tornassem cidadãos de primeira classe e os demais estivessem a seu serviço sem reconhecimento.

"Uma ideia fixa: “O que vão pensar da gente?” (os vizinhos, os clientes, todo mundo). A regra básica era sempre dar um jeito de escapar à crítica dos outros, sendo muito educado, não emitindo opiniões, ou vigiando o tempo todo o próprio temperamento, para não deixar escapar nada que pudesse ser julgado pelos outros."

Sem oposição, a autora narra com uma tentativa de distância a história do pai, mas, em intervalos irregulares, questiona este trabalho, os sentimentos, a diferença entre eles, a perda iminente e já conhecida com um sentimento maior do que ela suportaria, que ela suprime em frases esfriadas à força. E, mesmo sendo o assunto que mais me aterroriza na vida e do qual eu sempre me afasto em qualquer forma em que o conteúdo se apresente, entrei nesse livro com uma voracidade e o terminei em pouco mais de 12 horas, considerando aí a noite de sono. Talvez por saber o futuro da história, o que restava a conhecer era a vida do personagem e não sua morte. Talvez isso tenha me salvado, talvez a narrativa de forma simples e sentimentos complexos, talvez por falar sobre família e cuidado. Talvez por, ao falar do pai, é a força da mãe que se sobrepõe, como alguém que é sempre o ponto forte da família, a estrutura que os mantém juntos de alguma maneira.

Fotografia atual de Annie Ernaux, escritora francesa, prêmio Nobel de Literatura em 2022.
Annie Ernaux
Annie Ernaux não me deixou leve com esse livro, mas me fez ver, claramente, como ela supera a premiação que lhe foi dada. Enquanto escrevo, já penso na sequência, no livro seguinte dela que trará suas histórias reais, de memória de família e que reverberarão em mim com aquela profundidade que nos aperta o peito, ao mesmo tempo que nos abre um sorriso íntimo de satisfação, de sair da zona de conforto e nos fazer pensar em nós, em nossa história de vida e familiar, nas nossas pessoas simples e como, sem o que foi e é a vida delas, nada seríamos hoje.

"Não pensava no fim do meu livro. Agora eu sei que ele se aproxima. O calor chegou no começo de junho. Só de respirar pela manhã, dá para saber que fará um dia bonito. Logo não terei mais nada para escrever. Queria adiar as últimas páginas, queria que elas pudessem estar sempre à minha frente. Mas não é possível voltar muito atrás, corrigir ou acrescentar coisas, e nem mesmo me perguntar onde estava a felicidade."

***

Para me ajudar a manter este espaço sempre vibrante, me paga um cafezinho? É só clicar no buy me a coffee e eu te levo lá! Obrigada!

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Tati Reuter Ferreira

Baiana, curadora de projetos audiovisuais, escritora e crítica de cinema. Vivo de café, livros, cinema, viagens e praia. E Pituca.


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