• Home
  • Sobre
  • Portifólio
  • Contato
linkedin instagram facebook pinterest

Café: extra-forte


futuro ancestral, ailton krenak

Há determinados livros em que é preciso voltar e não demoramos a perceber quais são eles. Assim que começamos as primeiras páginas, já percebemos algo importante que nos toma de vez. Futuro Ancestral, de Ailton Krenak, com esse título tão lindo quanto profundo, é um deles.

Aílton Krenak é um autor conhecido por seu trabalho no campo dos direitos indígenas e que se torna, a cada dia, mais relevante para todos. Com a crise indígena acentuada no Governo Bolsonaro, especialmente na Terra Indígena Yanomami, ele torna-se não apenas importante, como urgente. Em seus textos, Krenak traz uma dimensão da natureza de quem a vive de perto e em profundidade. O ambientalista faz filosofia com uma linguagem acessível, direta e poética. Ler seus textos é encontrar uma roda de conversa ampla, empática e crítica sobre nós mesmos enquanto humanos e brasileiros, e sobre como ainda desconhecemos muito do que somos feitos.

Em Futuro Ancestral, editado pela Companhia das Letras, encontramos 5 textos que tratam do nosso comportamento no mundo. Da Pandemia à educação das crianças e do respeito às idades e saberes, do respeito à própria infância, fala também da matança dos rios e das construções das cidades que insistem em separar 'meio ambiente' de 'civilização', trata ainda da tragédia de Mariana e mais um tanto de coisas. Os textos estão conectados com essa ideia de futuro ancestral talhado no presente, uma ideia de que o tempo é o fluxo contínuo de trocas entre gerações, como ele cita a vida das crianças Krenak, que

anseiam por serem antigas. Isso porque, nas humanidades em que as crianças ainda têm a liberdade e a autonomia de aspirar mundos, elas valorizam muito os velhos. As pessoas antigas têm a habilitação de quem passou por várias etapas da experiência de viver. São os contadores de histórias, os que ensinam as medicinas, a arte, os fundamentos de tudo que é relevante para ter uma boa vida. É o que os quéchuas chamam de sumak kawsay e que foi traduzido para o castelhano como bienvivir, ou bem viver, em português. 

A conexão que se faz entre o jovem e o ancião é a de sabedoria de vida, conhecimento e respeito. O idoso é quem passou pela experiência de viver e, em vez de ser descartado como se faz na urbanidade, é reverenciado, é um exemplo a ser seguido e é quem compartilha conhecimentos. Esse trecho, quase ao fim do livro encontra ressonância em sua abertura, quase poesia em suas primeiras páginas:

Nesta invocação do tempo ancestral, vejo um grupo de sete ou oito meninos remando numa canoa: 

Os meninos remavam de maneira compassada, todos tocavam o remo na superfície da água com muita calma e harmonia: estavam exercitando a infância deles no sentido que o seu povo, os Yudjá, chamam de se aproximar da antiguidade. Um deles, mais velho, que estava verbalizando a experiência, falou: "Nossos pais dizem que nós já estamos chegando perto de como era antigamente".

Eu achei tão bonito que aqueles meninos ansiassem por alguma coisa que os seus antepassados haviam ensinado, e tão belo quanto que a valorizassem no instante presente. Esses meninos que vejo em minha memória não estão correndo atrás de uma ideia prospectiva do tempo nem de algo que está em algum outro canto, mas do que vai acontecer exatamente aqui, neste lugar ancestral que é seu território, dentro dos rios.

foto de ailton krenak ambientalista
Ailton Krenak
Quando começamos a leitura, encontramos o trecho e só ele já nos faz respirar melhor. Krenak traz formas de ver o mundo e de entender que é preciso reconhecer riquezas, tradições e o respeito pela natureza como algo intrínseco à humanidade e não à parte dela. Suas reflexões sobre urbanidade, cidadania e canalização dos rios, um contrassenso e o oposto do progresso real são precisas e urgentes. Aqui em Salvador, Bahia, por exemplo, há um grande volume de obras públicas, como a construção de avenidas e viadutos que acabam com a vegetação e ampliam a canalização dos rios, os tornando esgotos ou tapando seu acesso à luz, como para esconder poeira embaixo de um tapete. Os rios não podem ser os problemas das cidades, eles já existiam quando os assentamentos urbanos tomaram posse e é por eles que as cidades passaram a existir naquele local. Os alagamentos e enchentes não acontecem por causa dos rios, mas por um sistema de esgotamento ausente e despreparado, em um planejamento urbano ineficiente, para dizer o mínimo. A natureza sempre indica o que estamos fazendo errado de forma explícita, e é esse o ensinamento que precisamos.

Para além das ideias base, o livro é uma delícia. É dos que deveria despontar em provas de concursos, vestibulares, ENEM. È preciso educar com livros como esse, levar para a mesa de bar dos amigos, de jantar das famílias, de lanche nas escolas. Aqui em casa, o livrinho segue com tantas orelhas marcadas, que quase dobrou sua fina espessura. É muito o que reler e refletir, dividir com quem quiser, e como ele nos relembra:

Nossa sociabilidade tem que ser repensada para além dos seres humanos, tem que incluir abelhas, tatus, baleias, golfinhos. Meus grandes mestres da vida são uma constelação de seres - humanos e não humano.

Livro: Futuro Ancestral, de Ailton Krenak
Companhia das Letras, 2022. 130 páginas.

***
Share
Tweet
Pin
Share
No Comentários

Ano passado, reencontrei uma colega da época de escola que não via, possivelmente, desde a época da escola, no final dos anos 90. Maria Cecília mora fora do país e vínhamos nos acompanhando pelas redes sociais, estreitando uma amizade atrasada mas muito bem vinda neste momento de nossas vidas. Fomos a uma livraria, trocamos figurinhas literárias e ela me indicou este livro: Kim Jiyoung, nascida em 1982, de Cho Nam-Joo.

livro de kim-jiyoung, nascida em 1982, de cho nam-joo, pela editora intrínseca
Kim Jiyoung, nascida em 1982. Cho Nam-Joo, Editora Intrínseca
O livro trata de uma mulher, como o título indica, nascida em 1982 na Coréia do Sul, mãe de uma criança e casada. Ela largou o trabalho para ter a filha e ser dona de casa, um fato comum no país. O relato já começa com uma transformação da protagonista, narrado na terceira pessoa. Kim Jiyoung parece estar tendo algum tipo de dissociação, muda de personalidade subitamente quando conversa com o marido ou familiares e se posiciona como nunca havia feito antes. A tendência, na Coréia do Sul, é que as mulheres tenham uma postura mais submissa e devotada à família, a aceitarem o pesado fardo da criação quase unilateral dos filhos e assumirem toda a responsabilidade dos cuidados da casa e das tradições familiares.

Entretanto, Kim Jiyoung cansou. De alguma maneira, seu comportamento estranho, o esgotamento do sujeito, é percebido nitidamente sob a forma de um desequilíbrio mental e o marido foi sozinho ao psiquiatra falar sobre a esposa e tratamentos possíveis. Entenda aqui, ele foi sem ela ao psiquiatra, porque a ela não importa saber de si.

O livro é excepcional e a vontade é de sair descortinando ele todo por aqui, conversando sobre cada situação que se apresenta, inclusive sobre a escolha narrativa que se explicará mais adiante - o fato do narrador não ser a própria Kim Jiyoung. Nada disso é à toa, o que torna a obra curta demais para sua qualidade.

Falar sobre o papel da mulher, em quase qualquer sociedade, é dialogar sobre imposições do patriarcado e suas tentativas de rompimento dessa estrutura arcaica. O livro encontra um caminho interessante porque traz um exemplo que está na ordem do ‘comum’ e envereda pelo fantástico com as ‘personalidades’ apresentadas da protagonista. A justificativa para esta solução é clara, marca a ausência de subjetividade imposta às mulheres daquela cultura para serem cumpridoras de tarefas domésticas, executoras apenas, sem reflexão, vontades, reclamações, afeto. Então, a partir do momento que Kim Jiyoung deixa de ser quem é para aquele microcosmo - e talvez pra si, ela assume as personalidades de todas as mulheres.

A obra não se restringe ao fato que abre sua história. Ela cria um panorama para que entendamos como é a vida de Kim Jiyoung, de seu nascimento ao momento em que tudo acontece. Assim, acompanhamos um relato que trata do seu nascimento, da situação familiar, dos privilégios do filho homem, das atribuições dela enquanto mulher, da adolescência, dos assédios e da perpetuação dos privilégios masculinos. Além disso, inclui dados estatísticos de comportamento e sociedade, criando quadro realista do que é ser mulher na Coréia do Sul dos anos 1980 para frente.

O livro é baseado na vida da autora, Cho Nam-Joo, que deixou o trabalho para se tornar mãe, e seus um milhão de exemplares vendidos no mundo em 18 idiomas atestam sua relevância e como ela se comunica em diferentes culturas que, não coincidentemente, abraçam algumas características semelhantes de comportamento e sociedade. Em pouco mais de 170 páginas temos tudo isso com um final excepcional. Boa leitura!


Livro: Kim Jiypung. nascida em 1982, de Cho Nam-Joo
Editora Intrínseca, 2022. 172 páginas.
Share
Tweet
Pin
Share
No Comentários
Posts mais antigos

Sobre mim

a


Tati Reuter Ferreira

Baiana, curadora de projetos audiovisuais, escritora e crítica de cinema. Vivo de café, livros, cinema, viagens e praia. E Pituca.


Social Media

  • pinterest
  • instagram
  • facebook
  • linkedin

Mais recentes

PARA INSPIRAR

"Amadores se sentam e esperam por uma inspiração. O resto de nós apenas se levanta e vai trabalhar."

Stephen King

Tópicos

Cinema Contos e Crônicas streaming Documentário Livros Viagem comportamento lifestyle

Mais lidos

  • Querida, vou comprar cigarros e volto
    Querida, vou comprar cigarros e volto
  • Crítica: Love 3D, Gaspar Noé
    Crítica: Love 3D, Gaspar Noé
  • Cinema em Casa | Robert Downey Sr.
    Cinema em Casa | Robert Downey Sr.
  • Jia Zhangke - Um homem de Fenyang
    Jia Zhangke - Um homem de Fenyang

Free Blogger Templates Created with by ThemeXpose