Maidentrip
Procurando no dicionário o
significado de maiden, cheguei em
dois sentidos próximos ao que se refere o título do filme: um é mais direto e
trata de algo feito pela primeira vez e o outro, indireto e poético, diz que maiden é mulher virgem, solteira, que
nunca se casou. Eliminando o ‘virgem’ para evitar uma discussão sobre a
sexualidade que não tem relação com a obra, seguiremos com estes dois: mulher
solteira/que não se casou e/ou que faz algo pela primeira vez.
Isso porque Laura Dekker foi a
pessoa mais jovem a cruzar num barco todo o planeta. Com 14 anos, após uma
batalha judicial de 10 meses na Holanda que queria impedi-la de realizar
seu sonho – não seria algo imprevisível, já que é uma menor que faria uma viagem
arriscada e a justiça queria salvaguardar sua saúde e garantir sua educação
formal – ela consegue o que queria e parte em sua jornada. Filmando a si e ao
percurso enquanto está no mar e com o apoio de outros cinegrafistas por onde
passa, vemos um perfil em transformação da adolescente teimosa a uma mulher em formação, se tornando independente e redefinindo seus objetivos.
Tomando um pouco de distância do
filme, ele poderia muito bem se passar por ficção. Essa garota jovem demais,
bonita, cheia de discursos e opiniões, ganhando cada vez mais espaço no mundo
parece ter saído de uma história de aventura. O fato é que tudo aconteceu e vê-la se filmando, nos deixa dentro daquele barco, participando como observadores atentos e ansiosos. Apesar de nova, Laura estudou navegação e tinha experiência de tripulante desde criança, em família. O afinco em cuidar, preparar e ajudar a reformar o barco junto a seu pai e economizar cada centavo para a viagem já indicava uma obstinação e vocação que poucos têm tão cedo. Talvez tenha sido por esta postura que a justiça holandesa a autorizou.
Os pouco mais de 80 minutos são realmente muito poucos pro que estamos vendo. As observações de Laura enquanto está só sobre sua história
de vida, família e criação, a relação com a escola, saem de uma imaturidade infantil para uma conclusão do que quer para si e um dos marcos é quando
decide mudar a bandeira de seu veleiro, da Holanda – onde foi criada – para Nova
Zelândia, onde nasceu. Este é um dos momentos mais emblemáticos do filme, junto com a longa permanência no Oceano Índico. Enquanto o barco se movimenta, vamos juntos com ela e os dias passam numa velocidade de filme de ação. Mas quando acaba o vento e ficamos a sós, como nos resolvemos? Em tempos de internet em todos os lugares, o tédio de 5 minutos é insuportável, imaginemos agora semanas quase à deriva no meio de uma imensidão azul. A valoração do tempo necessariamente se transforma e mais uma vez nos pegamos pensando em nossa própria trajetória.
Em filmes de viagens – documentário ou ficção –
há sempre datas ou contagem de dias e desenhos de mapas, gráficos que determinam a duração do filme muito
mais do que do percurso. Estas pontuações colaboram para a nossa orientação de tempo e espaço, a diegese fílmica. São marcações de
tempo que, quando o filme é bom, quase nos angustiam, como um livro que
gostamos tanto que não queremos terminá-lo e vamos alongando a leitura numa
tortura, querendo sempre saber mais e com pena de saber tudo. Este filme tem
o mesmo efeito: à medida que atravessamos os mares com Laura, suas
tormentas e maravilhas, sabemos que em breve tudo aquilo terminará e nos
deixará felizes, reflexivos e saudosos. Jornadas assim pegam
sempre os apaixonados por viagens, são implacáveis. E por ser
uma garota falante – claramente foi orientada para não emudecer e fazia
da câmera seu interlocutor, como Wilson, do Náufrago
– participamos de seu diálogo, anotando suas observações sobre a natureza, seus conhecimentos de mapas e navegação, numa fotografia que, mesmo sem querer, traz imagens magníficas da natureza
quase em estado puro.
Enquanto tem a posse de sua
imagem com a câmera na mão, a edição nos mostra uma menina de fibra, que
até em tempo ruim enxerga beleza, compromisso e orientação. Ao
mesmo tempo, quando em terra firme já é vista ao invés de se mostrar, quase não
fala. Claro que há aí dois fatores preponderantes: um cansaço
físico e psicológico de estar sempre como apresentadora de seu próprio
programa e, ao mesmo tempo, é o momento que precisa ter para conhecer o entorno, as pessoas, a natureza continental e se preparar para a nova saída. A edição de Maidentrip
merece atenção, basta imaginar o tempo de seleção do que era útil
ao filme e a imensidão que foi descartada. Se sentimos falta de mais histórias,
mas conseguimos sair disso satisfeitos, curiosos e reflexivos é porque deu
certo. O tempo do filme nos deixa sofrendo nos momentos
finais, esperando que Laura, agora independentemente de que idade venha a ter,
continue circulando por aí e nos trazendo um pouco mais da intimidade que
tem com o mar, de encontrar aí sua casa e de ter a coragem para abandonar todo
o resto e nos fazer pensar se a forma como vivemos é a que realmente queremos viver.
Maidentrip é um desses achados maravilhosos do Netflix. Está lá e
você pode passar por ele diversas vezes como fiz e não dar trela para esta
garota da capa. Confie, se uma menina de 14 anos resolveu viajar o mundo
sozinha num barco e saiu ilesa, ela tem algo pra te contar.
3 Comentários
Trata-se de uma abordagem bastante clara , enriquecida pelo vocabulário objetivo e extremamente elucidativo acerca deste épico.
ResponderExcluirTem no netflix daqui!!! Vou ler e fazer um comentário decente pra variar...
ResponderExcluirPra variar sua escrita é muito boa!confesso que comecei a ler e logo no começo quis assistir o filme ! Assim o fiz e terminando a leitura da crítica fico extasiada! Tanto cuidado e percepção de coisas que vi no filme e coisas que não pensei e a partir da leitura volto a refletir!parabens meu bem !
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