A história da questão racial nos
Estados Unidos não é novidade para nós, como também é possível encontrar
semelhanças com a nossa própria história. Essa constatação é baseada em dois
fatores: o estudo na escola da História Geral – que privilegia os
acontecimentos deste hemisfério e quase anula o outro – ou talvez ainda mais
grave, nominando a história do mundo como aquela das Américas e Europa, com
participações episódicas e inevitáveis da África e quase nada da Ásia e
Oceania. O segundo fator é ainda mais óbvio: a invasão da cultura de massa
estadunidense em todas as suas esferas. Cinema, tv, notícias, música, dança
(todas as artes), mercado, mentalidade, ideologias e padrões de vida e
comportamento chegam a nós com a mesma ou maior voltagem que a nossa própria
produção cultural e intelectual. Assim,
absorvemos quase osmoticamente – há quem o faça assim mesmo, sem pensar – uma
forma de ser que não nos é natural, mas assim se torna.
A parte boa é que a cultura ianque
se tornou tão familiar que a podemos utilizar para cruzar dados com o que
vivemos. 13ª Emenda, documentário
produzido e lançado pela Netflix ano passado, dirigido por Ava DuVernay serve
como uma luva para pensarmos, a partir de sua narrativa que tenta resolver a
equação do mercado/sistema carcerário norte-americano associando coerentemente
à histórica perseguição aos negros (e posteriormente, imigrantes) ao momento que
vivemos no Brasil, do nosso próprio sistema penal como um todo – da
investigação do crime à aplicação da pena em reclusão – e de suas consequências
oriundas da superlotação de presídios, anulação de direitos civis de quem ali
habita e sucateamento de suas infraestruturas, visando, por dedução, uma
possível privatização das unidades, em sua maioria administradas pelo Estado.
A trágica coincidência se estende
à própria educação e aqui se faz um parêntese a ser elaborado mais tarde – o
sucateamento praticado há décadas no ensino público visaria sua falência – frente
à falácia das campanhas eleitoreiras que lhe prometem prioridade – não
acarretaria na privatização da educação de base, segregando ainda mais a nação
desde a sua fundação (a parcela jovem da população) e assim, marginalizando
quem não tem renda que lhe permita o ingresso? Essa mesma evasão escolar
destinaria os jovens a duas saídas; o ingresso precoce ao mercado de trabalho,
eliminando a infância e juventude ou a possibilidade de entrada para a
criminalização. Retornemos aos Estados Unidos.
A Constituição dos Estados Unidos foi ratificada em Junho de 1788. A 13ª Emenda foi adotada quase um século depois, a partir de Dezembro de 1865, quando Abraham Lincoln era presidente. Seu texto segue assim:
“Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado. O Congresso terá competência para fazer executar este artigo por meio das leis necessárias".
Com essa premissa o filme
inicia sua jornada quase didática e elucidativa, explicando a relação entre o
fim da escravidão, a política de deturpação da imagem do negro livre na
sociedade americana, em uma sequência de governos racistas hereditários da era
Jim Crow (conjunto de leis dos estados do sul estadunidense que segregava
negros e brancos. Entre 1876 e 1965) – Nixon, Reagan, Clinton, Bush – e de como
sua própria marginalização criou um sistema cruel de encarceramento em massa e
desproporcional para negros (e posteriormente imigrantes, ou todos os não
brancos).
Hoje, é um problema que armazena 2.000.000 de pessoas em cárcere por crimes brandos e hediondos, com e sem
julgamento. Esse sistema criou a superlotação dos presídios, uma indústria
patrocinada pela ALEC, um conselho de políticos e corporações que formulam leis
e as entregam ao Congresso para aprovação, de acordo com seus interesses
econômicos. Uma destas empresas é a Wal-Mart, que vende armamentos e outra era a
CCA, uma corporação de administração de presídios. Anos depois, a CCA sai de
cena e o que parecia ser uma reforma visando o esvaziamento dos presídios
vira uma nova moeda; as corporações passam a utilizar o trabalho do preso – mão
de obra barata, para não dizer gratuita – para desenvolver sua indústria de
bens de consumo. Vale reler o trecho destacado na 13ª emenda mais acima.
A solução também veio da
ALEC, a partir da proposta de vigilância comunitária, escamoteada como proposta
de aplicação de fiança e condicional a criminosos leves. Suas novas corporações
associadas são de tecnologia de segurança e rastreamento geográfico (GPS). A conta está feita.
DuVernay, que também
dirigiu Selma (2014, sobre a marcha
de Martin Luther King, em Selma, Alabama pela a equidade racial de votos em
1965), retoma a cruel questão da cor, uma vez mais posta em xeque no perigoso
governo Trump, recém eleito presidente dos Estados Unidos.
Daqui, pouco sabemos posto que é recente, mas há previsões possíveis, por sua
campanha eleitoral xenófoba que atiça nazistas à paisana. O filme de DuVernay é
fundamental para entendermos um pouco do que acontece no dia a dia da população
negra americana. O que assistimos nos noticiários, o que é importado para nós é
uma parcela ínfima do que acontece todos os dias – dos pequenos preconceitos
que ‘apenas’ ofendem, a estatísticas aterradoras em que 1 a cada 3 negros pode
ser preso em algum momento de sua vida. Para os brancos, a proporção é 1 para
17.
O filme, além de ser uma aula sobre a questão
negra americana, o faz de forma magistral, com ritmo e direção precisos que não
nos deixam piscar. Imagens de arquivo em contraponto com músicas ditam a
cronologia e nos guiam para os debates com seus entrevistados, as relações
entre as manifestações da segregação de 70 anos atrás para as das semanas
anteriores refletem não apenas um regresso a tempos que pareciam mais sombrios,
como a tecnologia hoje possibilita a ampliação do alcance de seus assuntos e da
mobilização nacional e internacional. É um filme para ser visto em casa, em
família, em sala de aula, onde for possível, para que se aprenda, reflita e
discuta sobre nossos vizinhos. Ainda há muito que dizer e pensar, não só no que acontece lá, como em nosso próprio cotidiano. Não há grandes diferenças.






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