Que viva Eisenstein! - 10 dias que abalaram o México
Um diretor de cinema virgem aos 33 anos,
reprimido sexualmente encontra nesta situação sua válvula de escape para
produções que transformam o olhar sobre o cinema no mundo. Ao viajar para o
México a convite de um escritor americano que financia um grandioso projeto de
cinema, se depara com o calor dos trópicos, a vida latina, sua sexualidade
aflorada à base de pimenta e um modo de vida que desconhecia. Poderia ser uma
ficção qualquer, um romance clichê se não fosse por alguns detalhes: a
assinatura de Peter Greenaway e Sergei Eisenstein como seu protagonista.
Greenaway teve a ideia de retratar Eisenstein
nos dez dias que passou na cidade de Guanajuato, durante as filmagens de seu
novo filme. O projeto iniciado em 1932 nunca foi adiante, Eisenstein não teve
acesso aos negativos para edição, foi obrigado a retornar à União Soviética e
apenas em 1979, Grigori Aleksandrov monta o filme a partir dos storyboards,
textos e anotações do diretor russo já falecido. Até aí, nenhuma questão, senão
uma releitura sobre um grande personagem que pouco conhecemos em sua
intimidade.
Autor de O
ladrão, o cozinheiro, sua mulher e o amante (1989), Livro de Cabeceira (1996), e outros que marcaram a cinematografia
por sua inventividade e roteiros originais, Greenaway traz um jovem Eisenstein
com o perfil de um gênio infantil, que ainda não se descobriu sexualmente. O
autor de Encouraçado Potemkim (1925),
Greve (1925) e Outubro (1928) é redesenhado perambulando pela cidade com seu guia
e posterior amante Palomino Cañedo (Luís Alberti), descobrindo um modo de vida
mais livre, perigoso e, em seu caso particular, com luxos que jamais teria em
seu país.
Há aí dois pontos de inflexão: o primeiro é de
que o filme é muito divertido. E muito bom, se não partirmos da ótica cinéfila
que se ofende quando brincamos com os ídolos. Eisenstein é esse jovem
histriônico, vibrante e de fala rápida, como se a velocidade do pensamento não
acompanhasse a voz. A interpretação de Elmer Bäck é magnífica e abraça
integralmente a proposta do filme; ele está à vontade no personagem bonachão,
ultrapassa a semelhança física com aquele da vida real e ficamos esperando
mais, como se essas quase duas horas não fossem suficientes para participarmos
de suas aventuras e transformações.
O segundo ponto é o de que Greenaway não quis
fazer um documentário, um filme baseado
em fatos reais ou uma cinebiografia como vem sendo alardeado por aí.
Pode-se dizer que é um filme homenagem sobre um grande diretor que, muito
provavelmente, boa parte do público sabe quem é de ouvir falar. Seus filmes de
maior relevância remontam os anos 20, tratam da Revolução Russa e sim, são
muito bons, mas nunca farão parte da cultura popular. Não são filmes fáceis,
apesar de dinâmicos. Os três: Potemkim,
Outubro e Greve, todos anteriores
à viagem do México, trazem as bases teóricas de um autor de cinema completo,
que trabalhava a prática e o pensamento acerca de sua arte. Figura obrigatória das
escolas e fundador de uma das mais antigas escolas de cinema, o Eisenstein
teórico lançou as bases da montagem de filmes de uma forma que ainda hoje
poucos fazem bem. Se por um lado, Greenaway
criou um herói que jamais saberemos o quão fiel à realidade seria e aí há um
risco apenas purista – e talvez até supérfluo – por outro, o resgatou para a
contemporaneidade e estimulou a curiosidade do público sobre sua obra e vida.
Eisenstein virou pop.
De resto, está tudo aí: o diretor, como sempre,
brinca com a linguagem, apresentando nosso protagonista diversas vezes entre
fotos reais e imagens do ficcional, ao mesmo tempo o relacionando a uma
semelhança física e remarcando o território da ficção. Outros terão a mesma
apresentação: o fotógrafo e seu produtor – que apenas são pontuados na obra, assim
como Diego Rivera e Frida Kahlo. A divisão da tela em três partes, repetição de
planos e sobreposição são tanto uma tentativa de homenagear o russo, quanto a liberdade
de um diretor já estabelecido. Os movimentos de câmera especificamente no
quarto de hotel onde Eisenstein se hospeda marcam um trabalho complexo de toda
a equipe, em planos que parecem tomar os 360 graus do ambiente em uma discussão
com os financiadores e não chegamos a ficar tontos, mas é surpreendente ver o
preparo dos atores, a coreografia da cena, a criação de um clima cada vez mais
tenso e dramático – ainda que sempre sarcástico. A fotografia é um deleite à
parte e, de novo, outra marca desta cinematografia junto com o trabalho do
departamento de arte. Os contrastes, o terno branco de Eisenstein – o único que
tinha – se opõe às roupas escuras e elegantes de seu guia. A aura dourada da
suíte, com banheira e chuveiro com canos dourados, o piso claro e translúcido,
uma cama imensa traduzem um luxo impossível para o soviético.
O filme foca no relacionamento de Cañedo e
Eisenstein e suas diferenças culturais, além de reafirmar a impossibilidade de
conclusão do projeto mexicano. As causas para o fracasso foram tanto de
cronograma quanto orçamento e é estranho pensar desta maneira quando não era o
primeiro filme de um diretor conhecido por sua competência. A inferência é de
que Eisenstein teria se desconcentrado
naquele país ao se descobrir enquanto homem, se permitindo viver uma história
de amor impossível na União Soviética – ou na Rússia contemporânea – sendo
crime, o relacionamento homossexual. Mas, novamente, são interpretações
baseadas na história da produção e na criatividade deste diretor. Por fim, o
filme é tão rápido e cheio de nuances, que dá vontade de rever, para retomar
alguns diálogos e planos. Mas calma, não deve ser levado tão a sério pelos fãs
do soviético. Greenaway investiu tanto nesta experiência que seu próximo filme
está em produção e traz novamente nosso herói, agora encontrando as
personalidades do mundo que cruzaram seu caminho. Estamos aguardando.





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