Jessy
Acabei de ver Jessy, de Rodrigo Luna, Paula Lice e Ronei Jorge. O curta deixou, como
as grandes histórias, uma vontade de continuar e um sorriso de satisfação, o prazer de ver um filme com um tema grávido de interpretações em uma forma estruturada que nos faz querer mais, ao mesmo tempo entendendo que o que está ali é suficiente.
Escolhi não ler a sinopse por já conhecer
Luna e Ronei, parte da equipe e saber dos talentos de cada um, mas fiquei com algumas dúvidas e talvez por isso, gostei mais. Não
sabia se era uma ficção, um documentário. Sabia que a protagonista era uma atriz, Paula Lice,
mas o contexto das cenas e dos outros participantes deixaram tudo suspenso. Foi
uma boa confusão, trouxe a elegância dos grandes documentários. Hoje dá pra dizer
que nesse gênero, o país
conseguiu desenvolver um estilo híbrido, que se vê nos maiores diretores, com uma linguagem própria e madura que se liberta dos estereótipos que transformam a
não ficção em reportagem e filme chato. Essa liberdade nada mais é que a negação de um mito que obriga os documentários a mostrarem um mundo real que não existe diante de uma câmera. O que há é a verdade de um documentário, do que existe porque a câmera está ali registrando e como interpretamos este registro - é aqui que reside a riqueza dessas obras.
O filme conta a história de uma
atriz que se prepara para sua performance como a transformista Jessy, numa casa
de shows no Beco dos Artistas, em Salvador. Ela ensaia e é dirigida por artistas
experientes que trabalham ali mesmo e a todo instante orientam, estimulam e a
produzem. Enquanto vemos o ensaio, nos encantamos com nossa protagonista sem saber direito se ela faz uma personagem-atriz que está criando um personagem ou se é a atriz de verdade ensaiando um personagem – esta
encenação se contamina com o cenário real,
em enquadramentos como o cinema direto, com a mínima interferência do que acontece diante das lentes.
A construção de Jessy nos empurra para frente: para mim traz uma saudade pelo sotaque – essa baianidade que não
me deixa – uma região que é pouco vista em filmes, apesar de fazer parte do circuito turístico alternativo da cidade, e aí seguimos imaginando uma pré-história daquele presente: quem são
aquelas pessoas, a riqueza e o carinho com que se tratam, a preocupação em
mostrar um bom trabalho, as performances em si, o ambiente do Beco, como é seu cotidiano. Há uma questão de gênero que não dá para deixar passar: o que se quer mostrar é a transformação, a preparação e o nascer do personagem, mas é impossível esquecer que estamos vendo uma mulher se transformando num transformista. Em um determinado momento, uma das pessoas que a orienta no ensaio pergunta: você quer fazer uma mulher? E é uma pergunta direta que faz todo o sentido na preparação para o personagem, e concluímos que é, na verdade uma mulher que está ali. Mas, a resposta não dada é: não. Ela não quer fazer uma mulher, ela quer outra coisa.
Além dessa complexidade, ainda há as encenações dos coadjuvantes: estes artistas estão encenando para a câmera? São eles mesmos ali porque já estão
acostumados com os holofotes de suas personagens ou tem algo de querer se
mostrar um pouco mais? E a protagonista que é uma atriz se preparando para um
papel, o que vemos dela e o que vemos de construção para a câmera – quem é
personagem e quem é pessoa? É uma metalinguagem que consegue ser, ao mesmo
tempo, óbvia e sutil em pouco mais de dez minutos, que não precisa dizer mais do que o que está ali. De bônus, as gargalhadas deliciosas e ternas de
uma mulher-profissional-atriz e tudo o mais que ela queira ser e que vamos
concordar de imediato, porque agora ela nos dominou.
Depois do filme fiquei parada,
pensando. Nem tinha me tocado de que a sinopse estava na minha frente com
algumas respostas, mas a melhor delas eu nem havia perguntado: há uma versão maior, que amplia essa história. Mesmo
sem ser nada importante e estar distante do ritmo de produção e criação
tão forte e delicioso que é fazer filmes, fiquei orgulhosa por serem amigos e poder encontrá-los nos festivais. Ainda mais depois de ver uma produção inteligente e
delicada, em que a primeira cena se comunica com a última com uma força que
transforma e esclarece seu sentido inicial. Agora entendemos
aquela expressão silenciosa e aguardamos ansiosos por uma extensão que nos permita conhecer mais Jessy, Paula Lice e o que quiserem nos contar.
1 Comentários
Adoro essa coisa de "mockmentary" e brincar com o que é encenação e o que é "verdadeiro" dentro de uma narrativa cinematográfica. Alguns teóricos dizem que quando se liga a câmera, tudo vira ficção, mas de certa forma, também tudo vira um registro de uma história que se conta, mesmo sendo fictícia, sendo assim, podemos pensar que tudo também acaba virando um documentário. Muito louco isso, não?!
ResponderExcluirBjos, Tati!
PS: Saudades tava eu... de vir comentar coisas por aqui. Adoro falar igual Yoda! Hehehehe...