Comecei a gostar de Woody Allen
cedo, adolescente ainda, por causa de minha mãe. Lembro ter ido com ela ao
cinema ver Desconstruindo Harry,
lançado em 1997 quando tinha 14 anos. Não sei se entendi muita coisa, mas achei
divertido. Ela, como eu, gosta desse humor que está entre o sarcástico, irônico
e inocente ao mesmo tempo, sem palavrões, cenas de sexo explícito ou grande
violência. Para fazer um filme assim, tem que ter tino pra coisa, uma
sensibilidade que só os grandes comediantes conseguem sustentar.
E aí que hoje é mais um desses
domingos de dia nublado que eu amo tanto. Ele te deixa sem culpa e de camisola, sem
essa necessidade de ter que sair, ter que fazer algo, ter que ver pessoas, ter
que. É domingo e está nublado e eu não tenho que fazer nada, no máximo me
arrastar da cama pro sofá – ainda mais depois de um sábado intenso. O máximo
que consegui inventar foi essa série nova que espero cumprir: um filme por
semana, Filme de Domingo.
***
Manhattan é um dos filmes mais lindos e favoritos pelo planeta, de Woody
Allen. Vi que é de 1979, o que surpreende, porque a história não é marcada pelo
tempo. Mostra a ilha do ponto de vista de quem a ama, com a delicadeza do preto e branco e o
próprio Woody fazendo o personagem de sempre.
Esse é um daqueles filmes que nos
deixam pensando, por mais fácil que seja. Não é como um Bergman
da vida, cabeçudo, ou um Haneke, que temos que digerir. Terminamos Manhattan e ficamos imaginando a cidade,
seus cafés, o Central Park e aquele clima todo construído por um apaixonado,
querendo que o filme se transforme numa série, para que dure um pouco mais. Conheci NY anos atrás e por ser cenário de não sei quantos filmes e programas de tv, parece mesmo que já estivemos em algumas 'locações', mas sempre, sempre nos surpreendemos. Passei 15 dias e nesse tempo fiquei em dúvida se viveria lá ou não. Ainda hoje não consigo uma resposta. Mas é uma cidade fácil de gostar, sem dúvida.
A abertura do filme dá indícios
do nosso protagonista: um escritor falando no momento de criação, pensando no
texto. Em voz off, a narrativa perambula pelos bairros da ilha com uma sinfonia
ao fundo, como uma ode. Nesse momento, já estou apaixonada. Isaac (Woody)
é um roteirista divorciado que decide largar o trabalho para terminar seu
livro. Ele está saindo com Tracy (Mariel Hemingway, neta do escritor), uma adolescente de 17 anos
e acaba se envolvendo com Mary (Diane Keaton), a então amante de seu amigo. Como
se não bastasse, sua ex-mulher (Meryl Streep, sensacional) acaba de lançar um livro sobre o fim do casamento
deles.
Por mais enrolada que pareça a
história, o roteiro segue brilhantemente, com uma naturalidade que torna tudo
plausível. É impossível não pensar sobre o romance com Tracy, a adolescente e
traçar um paralelo com a vida pessoal do diretor. O casamento com Soon-Yi, 35
anos mais jovem – filha adotiva de Mia Farrow, ex-mulher de Woody – acontece
apenas em 1997, mas o romance começa anos antes. Incomoda um pouco ver Isaac e
Tracy, não pela diferença de idade, mas pelo fato de ser uma adolescente. O
contraponto da história, entretanto, é muito claro e é, provavelmente sua
justificativa: Tracy é mais madura que Isaac. Ela é segura, sabe o que quer e
ele entende que ela ainda tem muito o que viver, não compreende que o que ela
sente é mais do que um desejo e a deixa em segundo plano. O relacionamento com Mary, por outro lado, toma proporções deliciosas e a parceria com Diane Keaton vai ter seu clímax anos depois, em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, outro filme fantástico do diretor. Os dois quase repetem seus personagens conturbados no filme seguinte.
Talento é sorte.
O importante na vida é ter coragem.
Em uma mesa de bar, discutem a vida e por mais que essa frase aconteça num contexto em que pode passar desapercebida, sua força é brutal. É o princípio básico da criação artística, está em todos os livros e é mencionado em todas as escolas do tipo, mas se aplica a qualquer área. E não concerne apenas ao trabalho, mas nessa coragem de viver, de assumir riscos, nos posicionar e ser honestos na forma como somos, admitir o que queremos e seguir em frente. É disso que fala o filme inteiro, em que cada personagem assume os compromissos que tem consigo e tenta definir seus desejos.
A graça dos filmes de Woody está
em manter uma aparência de vida real, encontros e desencontros, como os acasos
da vida, decisões equivocadas, personalidades complexas em situações simples,
pessoas que sempre parecem sofrer além da conta por problemas quase banais – a psicanálise está sempre presente. O que engrandece Manhattan são suas reviravoltas e falas, o próprio protagonista é
mais rico aqui do quem em outros filmes, menos caricato em suas neuroses. O
reconhecimento da mudança do personagem por ele mesmo é um ganho tremendo e
saímos completamente apaixonados pela história, que dá o golpe de misericórdia no
último diálogo.
É uma história de amores, pela
cidade, por pessoas e suas complexidades. E, ao chegar no que ele acha ser o
fim do poço, se pergunta: pelo quê vale viver? É nesta resposta que reside toda
a graça e grandeza. E também por isso, a saudade de dona Stela bateu forte, vou
atrás dessa mulher linda e grande que não suficiente ser minha mãe, ainda me deu Woody de
presente pra vida.