Ficamos surpresos na primeira sequência do filme, com Matthew McConaughey quase 20kg mais magro e pensamos: esse promete. O ator, que sempre fez filmes de aventura e comédias românticas entre razoáveis e ruins, emagreceu bastante para fazer o protagonista, Ron Woodroof. Segundo o filme, Ron era um texano estereotipado, machista e homofóbico que se descobre com Aids no início dos anos 80 e com o gatilho da morte na cabeça, decide viver. Baseado em história real.
Antes de entrar nos pormenores do filme, é importante dizer que foi dos que mais impactou. Eu evito ver filmes de doença, são sempre dramas imensos e tristes e eu sempre, sempre sofro muito – deve ser um viés hipocondríaco ou reflexo por vir de uma família de médicos. Buscando uma vida mais tranquila, tinha me prometido escapar desse gênero. Mas, sento na sala e lembro que este é o filme da AIDS, do cartaz e do trailer e topei. Há um tempo a doença não aparecia nos cinemas e nesse sentido, é importante que esteja aí, que se torne assunto novamente, quase como uma função social, sem perder o entretenimento.
Nos anos 80, como hoje, Aids era um tabu. A diferença é que lá era o começo de tudo: da doença, da epidemia, da falta de tratamento, do preconceito.
Assim, quando Ron aparece na emergência do hospital e lhe passam o diagnóstico, sua surpresa e indignação surgem com uma explosão, como se o tivessem difamado, indicando uma possível homossexualidade. Não suficiente, recebe junto uma sentença de morte e também a recusa. Os tratamentos para Aids eram experimentais e ele – o anti-heroi do momento e eterno descrente das leis e do governo americano – burla quaisquer regulamentos para consegui-los.
Conforme li nas críticas, o filme saiu mais polêmico do que qualquer outra coisa. Era quase óbvio esperar uma resposta – ainda que não se tenha perguntado – da comunidade gay e transexual, dos outros Clubes de Compras ou dos conhecidos e familiares de Ron. Os filmes baseados em fatos reais costumam ser mal compreendidos, como se devessem àquela história um fundamento tão igual como aconteceu, quase como um relato documental. Enquanto um dos jornais dizia que Ron não era nada além de um homem comum, ordinário, que estava fazendo o que achava certo para sobreviver e ainda ganhar dinheiro com isso, outros diziam que era uma afronta à comunidade transexual colocar um ator não transexual, heterossexual para o papel – Jared Leto – que o executa muito bem, inclusive. Não suficiente, os próprios Clubes de Compras, se sentiram menosprezados, porque o filme só tratou de um, que nem era dos maiores, sequer o primeiro. De uma forma ou de outra, sempre haverá quem queira contar sua própria versão e o que não se percebe é que o que estamos vendo diante de nós é justamente isso – apenas uma versão.
O filme parte da descoberta da doença, à criação e crescimento do Clube de Compras. Funcionava como uma sociedade em que se paga um valor pela exportação dos medicamentos – também experimentais, muitos proibidos nos Estados Unidos, mas que tinham algum resultado em outros países – e recebia-se o medicamento mensalmente. Mais um viés importante do filme, o desconhecimento da dosagem do AZT, a citação sobre a indústria farmacêutica interferindo - ou seria 'contribuindo' - para as decisões do governo que, como no Brasil, é foco de controvérsia e corrupção dos grandes laboratórios e suas licenças. Ron estudou, buscou alternativas, viajou o mundo atrás de respostas para a nova e incurável síndrome, buscando alongar a vida de quem estava contaminado. Compreendendo que boa parte de seu público era homossexual, viu que além de precisar se adaptar, se permitiu conhecer e conviver. Assim, se tornou grande amigo de Rayon (Jared Leto) um homem cujo sonho impossível diante das circunstâncias era uma cirurgia de mudança de sexo.
O filme é centrado nestes dois personagens e é a forma como foram dirigidos e se entregaram aos papéis, que o torna especial. Saí do cinema bem até, diferente do que esperava, e fui conhecer mais a história do sujeito. O Ron do cinema ultrapassa seus limites em todas as esferas possíveis e sai de uma pessoa que odiaríamos para outra que faríamos questão de apertar as mãos. A grande questão está no depois. Descobri que o Ron da vida real provavelmente era, pelo menos, bissexual – segundo relato de seus amigos, de pessoas que conviveram com ele, de sua esposa. Esse ponto não invalida a qualidade do filme enquanto ficção, mas abre um leque enorme de questionamentos e aí sim, uma polêmica justificada em questões diversas: por que o tornaram homofóbico e heterossexual no filme? O fato dele ser gay ou bissexual reduziria seu público a uma categoria, transformaria seu gênero para filme gay? Essa foi uma estratégia industrial para ter público apenas ou para que o público que não veria esse filme caso o protagonista fosse gay tivesse acesso ao fundamento da história? Bom, levando em conta que estamos lidando com uma indústria, não dá pra pensar como Polyana e acreditar que Hollywood quer nos enviar uma mensagem. A ficção nos dá liberdade para fazemos o que quisermos com qualquer história e, por isso, os alertas de ‘baseado, inspirado, livremente inspirado em fatos reais’ existem. Ao mesmo tempo, é uma característica que altera completamente a história e talvez ela tivesse menos apelo e pipoca se excluíssemos a homofobia como ponto transformador no herói. De uma forma ou de outra, o filme ganha créditos por trazer uma história muito bem contada, com impacto na audiência por diferentes abordagens do tema em uma só produção, com atores em performances históricas e um lembrete para a turma mais nova sobre precaução. Imperdível.