Heroin(e)

by - novembro 23, 2017


Netflix lançou este ano um documentário de 39 minutos chamado Heroína, que trata de uma dura realidade em Huntington, West Virginia, nos Estados Unidos – crescente uso de heroína na cidade. Curto, bem feito e importante, vale atentar para cada detalhe e, tanto da forma de tratar do tema, quanto de como as protagonistas lidam com as situações mostradas ali..

Jan Rader é a chefe do corpo de bombeiros da cidade e atende às chamadas de emergência por overdose que abundam no local. Este é o primeiro choque que levamos, a quantidade de chamadas por dia, o índice crescente de uso de uma droga tão famosa décadas atrás, que nos parecia esquecida hoje, que quase não é mencionada em tempos de anfetaminas, ácido, maconha e cocaína. Não que todas estas drogas não existissem concomitantemente com a injetável, mas – talvez por ser injetável e causar uma impressão forte e triste – não ouvimos mesmo falar, pelo menos nos programas de TV, filmes e séries.

Não há mais o romantismo da droga, aquelas cenas em câmera lenta de Trainspotting, de  Cristiane F, de Diário de um Adolescente, de Streetwise. Prestando atenção a estes filmes, o próprio romantismo é criação dos personagens, universo dos viciados que precisam daquele êxtase – contundente, já que a droga de fato promove efeitos de prazer – ainda que raros e efêmeros. O fato é que nesta pequena cidade carvoeira americana, onde parece que nada acontece, o maior problema é o uso. É o que destrói famílias e é seu combate o objetivo de Rader, da juíza Patrícia Keller e de Necia Freeman, da Brown Bag Ministry, um programa que oferece alimentos, produtos de higiene e aconselhamento para usuários e ex-usuários de substâncias.

Jan Rader
O filme é importante porque retoma questões sérias e, muitas vezes, invisíveis às pessoas que não têm convívio ou relação com o assunto, mas que – nem que seja por curiosidade ou senso de comunidade – agora podem refletir. Há um momento que um dos bombeiros, em um debate, fala com Jan Rader sobre o uso de naloxona, uma droga que interrompe parte do efeito provocado pela heroína em uma overdose e ajuda a reavivar o usuário. O bombeiro então pergunta se esse uso não criaria uma tábua de salvação ao usuário, se o uso do medicamento não contribuiria para persistência no uso e um retardo no combate. Jan responde, entendendo a naloxona como um salvamento sim, que ao manter um usuário vivo, há, pelo menos, uma esperança dele se tornar ex-usuário e então, estando vivo, ser um cidadão, contribuinte e ajudar outros que estiveram e estão naquela situação. É uma fala brilhante que nos faz pensar nos discursos de lógica fácil que costumamos ouvir sobre outras drogas, culpabilidade e vício. O programa de drogas que leva o apoio da justiça local sob o comando da juíza Patrícia Keller é a prova de que quem está ali, é responsabilizado por seus atos e paga por eles – o que não significa que eles não terão suporte para transformar suas vidas.

Um tema trágico, difícil de abordar sem entrar nos clichês, aqui é tratado de forma honesta. A câmera acompanha vários resgates e o faz de forma a demonstrar que é uma rotina, com o cuidado de tornar os pacientes anônimos e dar visibilidade aos procedimentos e à situação de crise que é o grande volume de chamadas de emergência com o mesmo motivo. Ao mesmo tempo, evidencia como o trato destes pacientes é feito sob a supervisão de pessoas experientes, nem sempre carinhosas como as mulheres profissionais e protagonistas do filme, mas certos e seguros – e que também precisam de apoio na vivência de suas funções. A voz aos usuários é dada também, em alguns momentos, pontuando parte de suas realidades, mas sempre com um olhar otimista, indicando o prazer da droga, mas também no que ela acarreta a curto prazo – já que o uso a longo prazo não existe.

Patricia Keller e Necia Freeman
A câmera é rápida, o diretor ganha intimidade com seus participantes e, por não ser um filme intimista e lidar com pessoas já acostumadas a estar sob pressão, parece não fazer diferença, não causar incômodo e nem provocar alterações da realidade. Este processo íntimo não é à toa, o tema é recorrente tanto da região, quanto da vida da diretora, moradora de uma cidade vizinha que passar por situação similar. Seu próximo filme está em produção e trata do processo de recuperação de alguns ex-usuários de heroína.

É interessante ver a Netflix abraçando filmes com motivos importantes e que provocam questões sobre cultura e comportamento. O que sinto falta neste filme – ou talvez que servisse de assunto para uma continuação – seria entender se essa questão do aumento do uso de heroína é local ou se é uma situação ainda mais grave, se é um retorno da droga a níveis alarmantes e nacional ou regional. O que se diz é que, por várias pessoas sofrerem lesões em decorrência de suas ocupações, acabam tendo o acesso à drogas analgésicas restringido e encontram a heroína no meio do caminho. Mas, quem é o provedor, de onde vem? Sendo uma questão local em uma cidade pequena, não há como combater?

Questões são a parte fácil de elaborar, claro, especialmente na realidade brasileira em que vivemos, o que não falta é pensamento prático, propostas e lógica. Seria interessante também entender como a polícia de Huntington trabalha, se há alguma parceria ou aliança com os bombeiros, de que forma acontecem as investigações para, pelo menos, dificultar a entrada ou produção da droga na cidade. Esta é outra história, entretanto, e é só mais uma das reflexões que filmes assim provocam. Seu titulo  não passa despercebido, as mulheres dominam a cena e a batalha contra o vício e as mortes provocadas por eles, salvando usuários, os mantendo em programas de reabilitação, redução de danos e combate ao vício. Heroínas sim, são Jan Rader, Patricia Keller e Necia Freeman, além de Elaine McMillion Sheldon, que dirige o filme e vivenciou situações como esta em sua cidade natal, o tornando fundamental. Vale cada minuto.

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