Crítica: O Apartamento (2016)

by - dezembro 23, 2016


Rachaduras nas paredes e tremores no apartamento de Emad (Shadad Hosseini) e Rana (Taraneh Alidoosti). O casal deixa o imóvel com risco do desmoronamento. Emad é um professor de literatura durante o dia e ator de teatro à noite. Rana é atriz. Juntos, ensaiam A morte do caixeiro viajante, de Arthur Miller. Com a ajuda de um colega do elenco teatral, se mudam para uma cobertura que requer alguns reparos. Sozinha em casa, Rana é atacada por um desconhecido e espancada. Esse é o início do que pode ser um dos filmes mais interessantes e inteligentes do próximo ano.

Shadad e Taraneh são frequentes no cinema de Asghar Farhadi, assim como a temática do comportamento, relacionamentos e sociedade. Além desta última, o diretor tem mais um ponto de convergência com outros cineastas iranianos: a direção dos atores. Há um naturalismo presente nas dramatizações e diálogos que remete ao dia a dia real, cria as possibilidades de histórias verdadeiras, que acontecem na frequência da vida de tal forma que seus filmes poderiam ser documentários. Esse paralelo é um ganho para o espectador: vivemos fragmentos de uma cultura pulsante, como se fosse possível viajar imediatamente para aquela cidade e encontrar aquelas pessoas. Talvez até mais do que isso, é também como se víssemos amigos na tela, seus temas atravessam fronteiras e, mesmo considerando grandes diferenças culturais, há semelhanças no assunto, na estrutura narrativa e mesmo na performance dos atores com relação ao que vivemos do lado de cá.

Aqui, a narrativa questiona os reflexos de uma cultura que reduz a mulher ao conceito de honra definido por e perante o homem. Asghar Farhadi a reforça de forma quase subliminar, instaurando uma ponta de desconfiança em suas tradições, a partir do que expõe em sua filmografia. Essa é a força do cinema do diretor, a consistência de um discurso que não rompe com seus valores, mas que os põe à prova quando a condição humana entra em conflito com regras de conduta; especialmente no que concerne a ser mulher no Irã, sem se ater exclusivamente à religião, um tema mais frequente da cultura local.

Em À procura de Elly (2009), uma mulher desaparece na praia, em um fim de semana na casa de pessoas que ela pouco conhece. Os homens e mulheres que conviveram com ela nesse tempo e que a buscam, preferem antes manter sua honra a colaborar com as investigações e isso é levado ao extremo. Com A Separação (2011), um casal entra em crise quando a mulher vê a necessidade de morar em outro país, dando melhores condições de vida para si e para sua filha, enquanto o marido precisa cuidar do pai idoso e enfermo e as quer a seu lado. Em O Passado (2013) outras situações que envolvem um casal em crise a partir de segredos do passado, reforçam e questionam a manutenção de um comportamento em oposição à própria existência.

O Apartamento (2016) reafirma suas ideias de maneira ainda mais contundente. Uma mulher casada, atriz, é atacada dentro de casa por um desconhecido. A palavra estupro ou violação não aparece uma só vez em todo o filme e sua suspensão é uma das grandezas do roteiro, criando uma tensão que cresce gradualmente, como se fosse ao mesmo tempo impossível e imperativo tratar das violências cometidas e da gravidade da intolerância do marido em aceitar que a mulher não denuncie o crime à polícia. Uma situação insustentável se instaura e Emad decide fazer justiça – e a tal honra – à mulher sofrida, sem entender completamente a amplitude do que lhe aconteceu e suas reações.


O que é interessante e ao mesmo tempo poderia ser um ponto de atenção é que o filme se volta a Emad e suas preocupações, cabendo à real vítima um papel secundário reativo, de quem se recusa a uma exposição devida a um detalhe que favoreceu o crime. A mulher quer esquecer e precisa reaprender a viver apesar do terror, e isso é um retrato cotidiano tanto no Irã quanto em muitos outros países, onde a violência contra a mulher é uma rotina, tal qual a vergonha em denunciá-la. O que acontece, e é tão sabido que talvez seja desnecessário por em texto, é que as mulheres violentadas sofrem muitas vezes mais agressões quando vão às delegacias. De alguma forma incoerente, há uma distorção da visão agravada pelo costume do machismo que argumenta em favor do criminoso, culpando a vítima, por exemplo, por um comportamento provocativo, por uma vestimenta sedutora. Assim, talvez Farhadi se destacasse mais e sua história tivesse um impacto ainda maior – entenda-se que o filme é ótimo do jeito que está – se pesasse a mão ainda mais na questão feminina, dando mais voz à Rana.

Levando o prêmio de melhor roteiro e melhor ator em Cannes, é muito fácil entender o porquê. O paralelo da casa ruindo no início do filme é uma metáfora para tudo o que se seguirá: o sofrimento da mulher, um suspense crescente a cada atitude do marido, as consequências de decisões graves, a crise no relacionamento que se torna quase abusivo e que também rui. Ainda, a relação entre a vida de Emad e Rana em contraposição com seus personagens na peça, uma sutileza a mais na obra, carrega o espectador para um novo patamar de enriquecimento e sofisticação de uma história sem afetação. Não é simplesmente uma obra refletindo outra, mas a justaposição de narrativas – as aulas de literatura, o roteiro cinematográfico e os diálogos e cenas de ensaio do Caixeiro Viajante – que culminam em uma construção dramática vertiginosa e brilhante.


Tão impactante quanto a atuação de Shadad, é a de Taraneh, digna de tantos prêmios quanto ele. A sequência final nos deixa sem fôlego, em um clímax com grandes resoluções e suspense. Tudo o que vemos são trocas de olhares intensas, expressando muito mais do que as falas. Como uma caneta de ponta porosa e tinta indelével, gradualmente a narrativa acentua seu drama em um suspense não só quase insuportável – ao vermos a agonia de Rana em se omitir e tentar superar seu drama – quanto permanente, a partir do momento em que se percebe estar em um caminho sem volta, espectador e personagens. Taraneh nos transporta para uma humanidade inesperada e sentimos vontade de gritar com as decisões de nossa heroína-vítima. Toda essa riqueza e complexidade moral lembram os filmes de Susanne Bier (Segunda Chance, Em um Mundo melhor) que nos deixam sempre entre a cruz e a espada, entre o que é certo, o que é necessário e o que queremos ou teríamos coragem de fazer. O Apartamento é, enfim, imperdível.

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