Por que assistir | Crítica: Aquarius (2016)

by - agosto 24, 2016

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Aquarius, Kleber Mendonça Filho

Há uma grande diferença entre os litorais de Recife e Salvador, mas uma das mais marcantes, que é comparável a outras grandes cidades é a construção de prédios em suas orlas. Há poucos anos, Salvador permitiu o início da construção de prédios maiores de três andares na costa e isso ainda caminha com dificuldade, enfrentando barreiras jurídicas para a sorte dos habitantes e infortúnio das construtoras. Em Recife, por outro lado, essa restrição não existe e tanto lá como no Rio de Janeiro, em Vila Velha e em tantas outras cidades litorâneas, há uma moderna faixa vertical que atravessa o caminho da praia, criando um visual urbano de frente para a natureza perene, aumentando as temperaturas atrás do paredão de concreto e eliminando o passado de casas antigas e construções modestas.

Em Recife, na praia de Boa Viagem, mora Clara (Sonia Braga), uma viúva de 65 anos que habita o Aquarius, um edifício de 3 andares entre outros maiores. O Aquarius está vazio, Clara vive sozinha tanto em seu apartamento quanto no prédio que sua filha Ana Paula (Maeve Jinkings) insiste em dizer ser fantasma. Não só ela, como Diego (Humberto Carrão) concorda, o neto do dono da construtora que comprou todos os outros apartamentos e depende da saída de Clara para iniciar a demolição deste e a construção de mais um prédio de não sei quantos andares. Ele tenta gentilmente convencê-la a vender sua residência com o que parece ser uma boa proposta, mas Clara não quer sair, quer viver em seu apartamento incrível, aconchegante onde guarda memórias e a história familiar e agora individual, estando sozinha e muito bem, obrigada, de frente para o mar.

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O dilema da empreiteira que quer fechar um grande negócio esbarra no aceite improvável de Clara, em uma teimosia que inicia uma guerra fria que só uma mulher de pulso firme suportaria enfrentar. Mas Clara já enfrentou coisas piores. Kleber Mendonça escreve e dirige um filme sensível e inteligente, que guarda na força de uma mulher em desvantagem uma realidade cotidiana, a transformação urbana e social das grandes cidades. Sonia Braga incorpora uma senhora que se recusa a fazer o papel de velha e vítima, sem se incomodar com sua idade. Ao contrário, se aproveita do respeito conquistado ao longo de anos de convivência em família, entre amigos, com colegas de profissão e com o salva-vidas (Irandhir Santos) que lhe concede o privilégio de vigiar o arriscado banho em um mar de tubarões. Metafórico e literal.

Se em O som ao redor, Kleber buscava uma discussão entre classes a partir da relação de moradores, trabalhadores e passantes em uma rua residencial de classe média alta, aqui o embate é ainda mais complexo, mas com uma estrutura dramática mais simples e por isso mesmo, elegante. Há a velhice e como lidar com ela sem compaixão e condescendência. Não se fala sobre pena, Clara a rejeita e Diego até tenta se aproveitar dela, sem sucesso. Essa mesma velhice em pele de mulher, envolvendo sexualidade, patrimônio, respeito, corpo, autonomia é assumida a plenos pulmões e não é errado esperar ainda mais premiações para Sonia Braga, que abraça o personagem como se fizesse parte de si. O filme explora a realidade da situação da mulher viúva que escolhe a vida, a participação social e não se envergonha. É um retrato que alimenta um perfil, uma esperança de comportamento nas mulheres de sessenta anos e quase cria, se a palavra não fosse um exagero, um ideal de perfil no horizonte.

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Além da relação de corpo, indivíduo e posicionamento feminino que atravessa as idades, há a relação com a família, que se posiciona entre a instalação da senhora idosa segundo um perfil de dependência e seu oposto, na certeza de suas capacidades físicas e mentais. Essa é ainda uma questão a ser debatida especialmente no que condiz às aposentadorias, à qualidade e expectativa de vida e a própria imagem que a velhice imprime historicamente, e que entra em conflito com a realidade. A imagem do idoso inútil é um mal a ser combatido e, mesmo não sendo objetivo do filme, emerge como questão.

Com leveza narrativa, fluidez e grandes personagens, as relações sociais estão na pauta mais uma vez, na discussão entre as amigas de Clara em uma festa, sobre as empregadas domésticas, no valor de oferta do apartamento e agora na própria construção da cidade, a verticalização que funciona como um pano de fundo é a representação de progresso versus passado, como se uma coisa necessariamente implicasse em eliminar a outra. As intenções de todos são claras e a trilha sonora reforça em historicamente reconhecidas como grandes músicas, o que não precisa ser dito em diálogos.

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O filme nos atravessa a partir de capítulos e seguimos apaixonados por Clara, pela força dessa mulher, às vezes incoerente e beirando o absurdo, mas vivendo uma situação tão surreal quanto os outros quando a chamam de egoísta por se opor à decisão de um suposto consenso. A construção dramática em partes por tema – o cabelo, o amor e o câncer – mapeia uma personagem e seu entorno e saímos daí querendo mais do que 145 minutos, ainda que entendamos e saiamos satisfeitos, saímos querendo ouvir mais da mistura de sotaques e continuar com a força e orgulho que é ver o nordeste em cena, especialmente quando não é caricato e estereotipado. O que não é possível em novelas é garantido neste quase novo cinema, reforçado em qualidade e sensibilidade e tendo em Aquarius grande exemplo. 

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