Best of Enemies
Em dias muito muito quentes não
consigo fazer muita coisa. Acho que sou como os cachorros, fico parada em algum
canto, o lugar mais frio da casa – ou de qualquer lugar – me movendo o mínimo
possível. Em um destes episódios, me peguei assistindo Best of Enemies. O filme
estava há meses na lista, mas eu não estava pronta para ele. Documentário
de 2015 sobre uma série de debates que aconteceram na ABC americana nos fim dos
anos 60, entre Gore Vidal e William F. Buckley Jr. – o último, um perfeito
desconhecido para mim – era algo que poderia esperar.
Gore Vidal eu sabia quem era.
Tinha um livro dele pela casa, Kalki, que um ex deixou anos atrás. Tentei lê-lo algumas
vezes, mas acabei parando no meio. O fato é que sabia que o autor era um intelectual sério e respeitado, crítico norte-americano. Não sabia da
participação dele no cinema, isso veio bem depois – ele é ninguém menos que o
roteirista de Calígula (1979).
William F. Buckley Jr. é a novidade. Ultra conservador americano, também
intelectual e fundador da revista National Review, eram claramente opostas as
posições sócio-políticas e culturais dos dois. Buckley era relevante em seu
meio e ganhava notoriedade à medida que galgava seu espaço televisivo.
Representava a família branca e tradicional, elite econômica americana. Gore
Vidal era homossexual.
A ABC, quarta emissora em audiência no país, resolve em 1968 promover uma série de debates entre eles
sobre as eleições presidenciais daquele ano. A ideia era contrapor argumentos e
acalorar um debate político interessante e inteligente. O detalhe é que a
emissora subestimou seus protagonistas.
O documentário parte deste mote,
exibindo trechos dos debates e, à medida que as trocas de farpas esquentam o clima, nossa ansiedade cresce junto e esperamos, como um novo capítulo de
novela, o ‘dia’ seguinte. Ao mesmo tempo, correm em paralelo os acontecimentos
daquele ano, o que provocou aquelas discussões, quem eram os candidatos à presidência, o que
cada um representava. Esta postura é quase pedagógica, mas feita em bom ritmo, parecemos viver aquele 68 agora, pontuados por observações de quem conviveu com os dois protagonistas.
Best of Enemies é um grande
titulo, literalmente falando. Quando pensamos em debates presidenciais, vêm à
mente aquela palhaçada que vivemos a cada quatro anos, muito mais um programa
de entretenimento do que um serviço de utilidade pública, como deveria ser. O
problema dos nossos programas está nos candidatos que não se preparam para discutir política. Ficamos sem conhecer seus projetos, suas ideias
para o desenvolvimento do país e vemos um bate boca sem fim de injúrias tão
rasas quanto àquelas que praticamos na infância. Não temos os melhores
adversários possíveis, não ficamos em dúvida por suas propostas, não continuamos a conversa entre nós, em casa ou na rua. Os nossos são sobre a superfície dos argumentos,
o disse-me-disse, quem bate no palanque, quem grita mais alto e quem rouba
menos. Não digo com isso que os daqui são piores do que os de lá, mas a ideia
da emissora de colocar intelectuais ao invés de presidenciáveis se torna mais
interessante porque em tese, ouvimos as opiniões embasadas sobre os assuntos e
não uma corrida por medalhas.
Mas, somos de carne e osso e
assim são nossos oponentes e as pessoas da televisão. O filme passa uma ideia
de que Buckley de fato estava lá para discutir e defender seu candidato e
supostamente Gore Vidal deveria fazer o mesmo. Mas sua ideia era outra: ele encarava
Buckley como seu inimigo, com ideias perigosas para a nação, quase um Donald
Trump e isso é bastante assustador, queria desmoralizá-lo combatendo seus
argumentos com outros melhores e contundentes. Era sim, uma batalha ideológica.
A ABC, agora líder de audiência
no horário nobre, não sabe o que fazer além de se manter firme em sua proposta,
deixando o mediador tonto, sem conseguir barrar as trocas mais violentas. À
medida que o programa corria ao vivo, a crise política avançava – a questão racial entrou
em foco e manifestações violentas tomaram o país, os Estados Unidos insistiam na Guerra
do Vietnã – os ânimos se acirravam em todos os meios de comunicação. O filme
transmite bem essa efervescência nos encaminhando para um final imprevisível.
Os diretores, Robert Gordon e
Morgan Neville nos dizem mais: os debates se tornam,
eles mesmos, notícias. As outras emissoras e meios de comunicação passam a
acompanhar a trajetória ao longo dos dez dias que marcaram de vez a televisão
americana. A tv não existia há muito tempo, mas já havia construído um padrão
jornalístico e de entretenimento e aqueles embates eram novidade, como uma troca de tapas com luvas de pelica. Após este, diversos outros programas foram
criados com esta base, programas de debates com personagens fortes – mas nunca
seriam como o primeiro.
Mandei um recado para um amigo phd em política internacional que mora em São Paulo, para que me ajudasse com informações
sobre Buckley, Vidal e lhe pedi uns textos para iniciantes, para trocar umas
figurinhas sobre esses caras tão importantes para os Estados Unidos de
então. Terminei de ler um livro sobre documentários que falava que o espectador
assíduo está sempre em busca de conhecer mais, de exercitar
sua curiosidade. Talvez seja isso mesmo, essa febre que me acontece e me deixa
carente de pessoas tão doentes quanto eu. Quem me dera o amigo de fora estivesse
aqui para ver comigo essa pérola escondida da Netflix e me aturar nas perguntas
de base. Vale cada minuto.
*Caso alguém se interesse, não
será tempo perdido e estarei esperando para trocarmos ideias.
0 Comentários