Amy

by - fevereiro 07, 2016

Quando Amy Winehouse morreu e a mídia noticiou, ficou um silêncio esquisito. Eu sempre gostei da voz dessa mulher muito jovem para aquilo tudo. Eu tinha essa ideia de que aquela voz maravilhosa não cabia naquele corpo tão fininho e frágil, como se precisasse de mais fibra, mais força, mais tempo. Fiquei triste de verdade, naquela tristeza que sentimos quando se perde alguém tão relevante para todos. É um luto diferente; não dói como um parente ou amigo, mas ainda assim, o peso, o vazio e uma pena de nós mesmos, de termos perdido – como se fosse culpa nossa – algo tão precioso ou de termos deixado acontecer, permanece.

Essa semana estreou na Netflix o documentário Amy, de Asif Kapadia e acabei de assistir aqui, nesse domingo de Carnaval. O filme mostra um pouco da vida da cantora, traçando a trajetória do seu início de carreira, ainda adolescente. Mesclando vídeos domésticos, entrevistas, shows, clipes, ensaios fotográficos e muito arquivo jornalístico sobre sua vida pessoal e profissional, vemos uma aparente cobertura completa de talvez seus últimos 15 anos. Quem lê assim, pensa que estamos falando de alguém que morreu velho, mas Amy sumiu aos 27 anos.
Aparente cobertura completa, porque nunca será, de fato. Os documentários biográficos de gente que não está mais por aqui sofrem ainda mais com esse olhar sobre o outro. É óbvio e certo que todo filme é uma perspectiva sobre outrem partindo de alguém. Aqui, Kapadia constrói o perfil de uma mulher bastante inteligente e indiscutivelmente talentosa, mas que se perdeu, se deixou levar por problemas grandes demais. Como aquela ideia do artista que não cabe em si, Amy parecia mesmo ser mais do que poderia suportar, mas isso é injusto de se dizer. Ela foi uma mulher corajosa em um nível que só os grandes artistas conseguem ser. Ela não fazia distinção entre vida e carreira: tudo estava intimamente relacionado e a prova disso são as letras que compôs. Ao mesmo tempo, lá longe pisca um alerta de se esse filme não seria um pouco condescendente com a cantora, se não quer defendê-la, protegê-la como o pai dela deveria ter feito.

Algumas vezes nos perguntamos durante o filme porque as pessoas ao redor dela não a ajudaram de fato. De fato mesmo, de verdade, de arrastá-la pelos cabelos e tentar ajudá-la, mas não sabemos como tudo aconteceu. Apesar da vida da cantora ter sido ganha pão dos tabloides ingleses e americanos e com isso repercutir no resto do mundo uma imagem de uma personagem problemática e, como ela não está aqui para falar por si, ouvimos dos outros, destes amigos, parentes, colegas de trabalho contando suas preocupações e participando muito pouco, talvez como um ela tem que se cuidar, tomara que ela melhore, tomara que ela perceba isso, já estou de saco cheio de tentar ajudar, de uma forma inglesa demais. Claro que a culpa de quem se acaba é de quem se acaba, mas dá vontade de se meter na história e tentar fazer alguma coisa. 
A estrutura fílmica funciona bem; o diretor deve ter coletado uma quantidade quase infinita de material e a construção deste mosaico é bastante equilibrada e dá uma noção da evolução da carreira de cantora ao mesmo tempo em que traz os bastidores de sua vida. Só sabemos que será um filme triste, história com final conhecido.

Uma das questões mais importantes – talvez a mais – foi respondida e isso é o máximo de felicidade esperada. Kapadia nos mostrou uma cantora que foi muito além do perfil artista que usa drogas e morre cedo. Esta ideia de garota-problema não se aplica a Amy. A capacidade artística dela, o conhecimento musical – isso sim, pouco explorado aqui, nos deixando com vontade de saber mais (um pouco como Ingrid Bergman) – tanto de repertório quanto de elaboração só significavam que ela foi uma artista completa, como disse Tony Bennet e que se equipara aos grandes nomes da música mundial. E tudo muito cedo. Um dos grandes problemas foi justamente a ascensão meteórica para uma pessoa que em momento algum foi preparada ou almejava isso. Claro, ela provavelmente buscava reconhecimento, mas não a este preço. A invasão absurda do jornalismo ruim, a exploração de sua vida como um folhetim, os julgamentos, o próprio pai lucrando com a exibição exploratória da filha, um namorado com o mesmo - e pior - perfil, a busca cega por mais e mais dinheiro foram fundamentais à sua derrocada.
Mas ela tentava ir adiante sempre. Se em suas letras ela se entregava, exibia suas questões com uma poesia urbana, rápida, fácil, o peso de sua voz, sua expressão no palco e a composição melódica a levaram para um outro nível. Levando 5 Grammys somente em 2008, conhecida internacionalmente e perseguida por paparazzis em cada esquina, ela já havia vivido 40 anos em 25. Nesse furor, o filme elabora a ideia de que ela só tinha que tentar viver bem, mas não conseguia. Os filmes domésticos, componentes vitais deste documentário, foram usados quase de forma abusiva, ficou na borda da invasão. Talvez o acesso e permissão de uso fossem negados por Amy, se fosse viva. Há muito de intimidade e privacidade – que já eram raros e caros à cantora – desde o uso de drogas a comentários dela com o marido, sua imagem sendo tão explorada todo o tempo por tanta gente.

Foram 127 minutos de Amy Winehouse e parecia faltar coisa. Não que o filme seja insuficiente – de forma alguma – mas a narrativa corre tão fluida e a personagem é tão carismática que fica impossível não se apaixonar por essa garota e querê-la por mais tempo. Fico pensando sobre o processo de montagem, o quão desafiador deve ter sido. Asif Kapadia é também o diretor de Senna, o documentário sobre Ayrton Senna, nosso piloto de F1 – o melhor do mundo. Aqui também havia muita imagem de arquivo, mas as domésticas eram muito mais tranquilas e em menor quantidade – fruto, claro, das épocas de vida x tecnologias disponíveis e comportamentos dos personagens. Chris King foi o montador dos dois.
Filmes com figuras emblemáticas e carismáticas carregam o peso da expectativa. Amy responde à altura, nos deixa com uma saudade dessa mulher que nunca vi ao vivo e questões para respondermos sobre nós. As que ficaram comigo são por que a pressa em viver tudo? Ainda não sei se ela estava certa, se alguma prudência pode ser equilibrada ou se nos protegemos demais de tudo todo o tempo. Isso me fez lembrar um texto delicioso e profundo de Natalia Ginzburg, uma escritora que conheci outro dia, As pequenas virtudes, do livro de mesmo nome, em que ela fala de coragem e prudência - e também me levantou outras questões do gênero. Também fiquei com quando é o momento para nos mostrarmos, para sairmos da superfície das coisas e das rotinas e vivermos ‘de verdade’? Essa é uma pergunta mais complicada em muitos sentidos e não virá uma resposta, mas uma forma de protesto e um processo de revolução íntimos. Isso porque, à primeira vista sempre diremos "agora", mas a resposta nunca poderá ter apenas uma palavra. Claro, Amy não causou tudo isso, mas é mais uma pedra em nosso sapato confortável. Não é disso que precisamos? 

Posts relacionados

2 Comentários

  1. Tati, assisti também, meio quebrado - um pouco um dia, outro pedaço uns dias depois - e acabei com a impressão de estar assistindo àqueles documentarios pra televisão, sabe? todos conhecemos o fato da morte dela, e das causas, e o documentario para mim partiu disso. E partindo disso achei a apresentação da vida dela meio enviesada pela onda das drogas.

    Não que aquilo ali tudo não tenha sido verdade, mas me incomodou a "medicamentalização" na hora de escolher como contar a história. E, apesar deles até mostrarem como ela era esmagada por caras em volta que a sugavam completamente, achei que ainda assim isso ficou de lado em detrimento de mostrá-la drogada. Não achei equilibrado não, apesar de ficar impressionado com a montagem. O material de arquivo e as entrevistas são muito ricos, e a maneira como foi tudo costurado é bem fluido, realmente.

    ResponderExcluir
  2. Oi San! Mas acho que é por aí sim. A montagem leva para o espetáculo, que era a questão das drogas - acho que para buscar 'audiência', era o caminho mais fácil. Quanto a parecer tv, acho que poe ser pela natureza das imagens, de serem efetivamente de tv, mas não encarei como uma coisa 'history channel' e tal.. não é uma forma nova de fazer documentário e senti falta de um aprofundamento do artístico, das escolhas, referências e tal, isso poderia ter sido melhor explorado. :D

    ResponderExcluir