Por que assistir | Crítica: O novíssimo testamento
Os cristãos radicais que se preparem, vem muita piada pela frente. Que abram seus corações e permitam imaginar uma brincadeira criativa como esta, rodada na Bélgica. Já adianto: vale a pena até o último segundo.
O Novíssimo Testamento |
Deus é mau humorado, perverso e cria leis arbitrárias para perturbar a paz de apenas toda a humanidade. Vivendo com sua filha Ea, de 10 anos, sua mulher, uma deusa que tolera as loucuras do marido e aguardando o retorno de JC – sim, Jesus Cristo – ele trabalha incessantemente em um computador, testando nossa paciência com catástrofes naturais, elaborando tragédias pessoais e leis esdrúxulas tão conhecidas entre nós, como a da torrada, que sempre cai com o recheio para baixo. A ideia aqui é que de fato, odiemos o rapaz.
Assim que Ea é espancada por ter entrado no escritório do pai, foge de casa para viver em liberdade. Aconselhada pelo irmão e a um toque no computador, informa a todos os viventes quanto tempo terão de vida e assim, como o próprio Deus assume, agora não precisariam mais dele e levariam suas vidas como bem entendessem. Essa comédia é fantástica em todos os aspectos; sob o olhar literário, a ideia de deus, os milagres, a família, nos remetem a Borges e Cortázar, que criam universos fictícios e nos prendem em seus sistemas de coerências, tornando os absurdos verossímeis. Filmes como Delicatessen (1991, Marc Caro, Jean-Pierre Jeunet), O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001, Jean-Pierre Jeunet) e Quero ser John Malkovich (1999, Spike Jonze) também fazem parte deste grupo. A fundação deste mundo fantástico se dá aqui no conjunto da obra: os cenários na casa de Deus, a forma como chegar à Bruxelas, a ambientação de época. A crítica à religião e sua história seguem o mesmo rumo, nos levando para o território seguro da comédia inteligente – jamais sairemos inertes desta sessão.
Deus é Benoît Poelvoorde o já
consagrado ator de Românticos Anônimos
(2010, Jean-Pierre Améris) e Coco antes
de Chanel (2009, Anne Fontaine). Irritante e desengonçado, tem arroubos de
grosseria que nos fazem querer amassar seu crânio, mas a falta de jeito com a
própria vida e os azares que a cidade lhe propicia já o fazem pagar pelo que nos
deve e rimos de sua desgraça. Yolande Moreau é a mulher de Deus e também uma deusa.
Submissa ao marido, aceita todo tipo de violência moral para si e para sua
filha. Com um ar inocente e, ao mesmo tempo, indiferente e ingênuo, ela nos
remete àquele tipo que aceita tudo por entender que a vida é assim mesmo. Isso irrita, mas
há um fundamento. E Yolande o faz magistralmente. Além deles, ainda vemos a
esperta Ea (Pili Groyne) e ninguém menos que Catherine Deneuve e François
Damiens (A delicadeza do amor e A família Bélier) como os novos
apóstolos.
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