“A filmagem me permite voltar a
sentir a dignidade da existência de cada um, inclusive a minha. O cinema é uma
maneira de preservar a memória das coisas. O documentário nos ajuda a conservar
os traços daquilo que se passou. É um meio de resistir ao esquecimento."
Jia Zhangke
Quando um cineasta resolve fazer um filme sobre
outro, é sempre um misto de cinefilia – esta adoração pelos filmes e o mundo
que os cerca – e a relevância daquele, não apenas para o cinema enquanto arte,
como também enquanto veículo de informação e reflexão, como o clichê da janela
que se abre para o mundo ou, neste caso, para um mundo bastante específico.
O Mundo (2004) é título de um dos filmes
de Jia Zhangke, diretor chinês de 45 anos, com mais de 20 filmes no currículo
(entre ficção e documentário) e protagonista do último filme de Walter Salles, Jia Zhangke – um homem de Fenyang. Na
obra de 2004, a história se passa em
um parque temático de Pequim, que retrata cenograficamente os pontos turísticos
e maravilhas dos cinco continentes. É também neste cenário que acontece uma das
diversas entrevistas de Walter Salles com o diretor e então, em uma conversa de
grandes observações, percebemos a relação e os contrastes da cultura chinesa
com a ocidental. Se o slogan do parque diz que se pode viajar o mundo sem sair
de Pequim (ou de casa), o mesmo vale para a internet. Jia ainda faz uma
analogia entre aquela cidade de fantasia e as semelhanças de onde vivemos,
imersos em redes sociais virtuais – outro simulacro que só acentua, com a
velocidade e a chegada do capitalismo no país, o individualismo e a solidão.
À primeira vista, parece que
estamos numa sessão de cinema para deleite da crítica e seu público
‘alternativo’. Da mesma forma, me perguntei onde haveria interesse do grande
público neste documentário de quase duas horas sobre um diretor alheio ao
circuito comercial. Não demora a se encontrar a resposta. Ao percorrer a
trajetória do diretor em trechos de seus filmes, discussões sobre eles,
conversas com os protagonistas e equipe técnica, ultrapassamos o espaço da
produção para adentrar o pensamento artístico, a subjetividade e identidade
chinesas para além da Revolução Cultural e sua organização coercitiva. Alguns
filmes do diretor seguem censurados no país.
A grande questão deste
documentário – e Walter Salles assume no livro que nasceu em conjunto, O mundo de Jia Zhangke (Cosac Naify,
Jean-Michel Frondon, com textos de Walter Salles, Cecília Melo e do próprio Jia
Zhangke) é sobre a representação cinematográfica da vida na China vista pelo
cineasta e como ela se contrapõe ao que é propagado oficialmente. Claro, isso
acontece em qualquer nação e naquelas totalitárias é ainda mais forte, mas o
diretor consegue traduzir o cotidiano de forma honesta, a vida como é vivida e
com senso crítico, posto que seja natural e humano discordar ou apenas
questionar. Ainda assim, o caso é que, junto ao contraponto que faz ao regime
apenas exibindo o que seria ‘comum’ em seus filmes, percebemos também o reflexo
do progresso e sua velocidade atropelando a todos, como acontece deste lado do
planeta e na China contemporânea.
Assistindo Plataforma (2000), vemos um filme sobre jovens entre a fase adulta
e a adolescência nos anos 70, quando o mundo se abria culturalmente e se insistia
em mudar o que era absurdo. Na China, o que se via era um tanto diferente, com
traços fortes da Revolução Cultural no pensamento dos pais, enquanto os jovens
tentavam se encontrar e entender o porquê de tanto cerceamento. Esta censura
que é transmitida para a nova geração é exatamente o que aconteceu com o
diretor – o filme inclusive é rodado em seu vilarejo – e a necessidade de
enxergar a vida de outra forma é iminente e necessária. A mise-en-scène é tão realista que os diálogos parecem mais de
improviso, bem como o entorno, que se vale de objetos de cena e cenário reais.
Essa forma de tratar do tema, com não-atores e atores jovens com pouca
experiência nos deixa em cima da tênue linha que divide o documentário da
ficção e isso também permeia toda a obra do diretor.
O filme de Walter Salles responde algumas destas
questões sem que o diretor brasileiro apareça. Aqui a ideia é de uma série de
entrevistas em locações, cidades onde vive e viveu o protagonista e seus
familiares. Um ponto curioso dentre tantos outros é sobre a forma de fazer seus
filmes. Jia nos diz que quando filma sem grandes problemas, aí é que se
preocupa. Ele acredita mais em sua produção quando nascem dela os conflitos e
dúvidas, pois daí vem a certeza de um trabalho bem estruturado e pensado. Em
outro livro que trata do documentário por quem os faz (A verdade de cada um,
Org. Amir Labaki, Ed. Cosac Naify), um dos autores, o diretor russo Viktor
Kossakovski afirma algo parecido: “não
filme se já souber de antemão o que quer dizer.” A ideia de Salles não é de
um documentário de observação, mas sobre as respostas que Jia Zhangke e quem
está em seu entorno transmitem a nós, produzindo um encantamento, curiosidade
sobre sua obra e o entendimento definitivo de porque para nosso diretor – e para
quem quer que assista aos filmes do chinês – este é um dos mestres do cinema
contemporâneo.