Uma conversa entre festivais: Guilherme Coelho

by - dezembro 03, 2015


Conversei com Guilherme Coelho, diretor de Órfãos do Eldorado via e-mail, ele entre os festivais de Varsóvia e Chicago, eu no Rio de Janeiro. Segue um trecho do bate papo.

TR: A história do livro começa no início do século passado. O que te fez trazê-la para um período mais próximo do nosso?
GC: Uma coisa que a gente não queria era fazer um épico, então sabíamos desde o início que deveríamos cortar as muitas elipses de tempo do livro. Eu fui entendendo também que não gostaria de fazer um filme de época, pois poderia ser cafona. (...) Que fosse atemporal, descolado do tempo cronológico. (...) O diretor de teatro Frank Castorf foi uma importante referência pra mim nisso. Suas peças são interessantes colisões de diferentes tempos, num palco. Então fomos atrás de misturar tempo, memória e fantasia, no cenário amazônico.
TR: Você fez algumas alterações com relação ao livro. Quanto tempo levou para fazer o roteiro, quantos tratamentos fez para chegar a esta forma?
GC: Trabalhei uns 3 anos no argumento e no roteiro, e com muita gente. Perdi a conta das versões. Eu queria escrever sozinho, mas sempre ouvindo os outros. Adoro ter com quem trabalhar. Cinema é legal porque é coletivo. A escrita do filme eu sabia que tinha que vir de mim, pois ao escrever um filme como esse você já está dirigindo o filme. (...)

Trabalhei o argumento com a Maria Camargo, depois com a Leticia Simões e com a Aline Portugal​, e terminei a versão final com o Marcelo Gomes. Trabalhei o roteiro com a Aline, e depois com o Hilton Lacerda. Depois, Marcelo Gomes e João Emanuel Carneiro terminaram de pensar o roteiro comigo. Na filmagem, reescrevi algumas cenas, depois da Karen Harley, montadora do filme, nos visitar em Belém. Na montagem, que é a continuação do roteiro, Karen e eu trabalhamos com o Marcelo Gomes e com o João Emanuel, amigos e importantes parceiros neste filme.  

TR: ​Como você chegou aos enquadramentos propostos? Foi estudando as locações muito previamente ou seguiu um pouco o processo documental de interferir o mínimo no espaço urbano e natural da região?
GC: A gente viajou muito em busca de locação. Viajei com o Milton Hatoum, Marcelo Gomes, Maria Camargo, Karen Harley, Marcello Maia, Tiago Marques, Teijido. Eu fotografei a região durante seis anos. Fiquei apaixonado por Belém, e vivi muito a cidade sempre que ia visitar. Ficava viajando com o filme na minha cabeça, em Belém, e subindo e descendo os rios nos barcos. A intervenção foi mínima, mas como tínhamos que criar uma atmosfera de fantasia e tragédia, tivemos que escolher bem o que enquadrar. Enquadrar não é apenas escolher o que fica no quadro, mas talvez, mais importante é o que não está no quadro. A diretora de arte Marghê Pennacchi e o Adrian Teijido, fotógrafo, trabalharam comigo em pensar como criar esta Amazônia fantástica e onírica. O trabalho dos fotógrafos Luis Braga e Marcel Gautherot foram importantes referências para nós.


TR: Qual é a sua relação com o Pará? Como surgiu o encontro com Milton Hatoum?
GC: Meus avós paternos são paraenses, de Belém, e como muitos paraenses pegaram um Ita no Norte e vieram pro Rio na década de 1940. Eu nunca tinha ido a Belém até oito anos atrás, quando fui fazer um trabalho, um video institucional. Aproveitei para ficar dois dias em Belém pra pesquisar um pouco sobre a história deles e pra fazer umas imagens da cidade com o meu amigo e fotógrafo Alberto Bellezia (que fotografou o "Fala Tu” e o “PQD”).

Belém me encantou e fiquei voltando à cidade nos próximos anos, primeiramente sob o pretexto de fazer um filme sobre a vida do meu avô, que trabalhava nos telégrafos bem em frente ao porto de Belém. Eu estava trabalhando nesse roteiro quando, em 2009, o Milton Hatoum lançou “Órfãos do Eldorado”. A Alexandra Maia, autora carioca e minha amiga, me recomendou que eu lesse, pois achou que haviam semelhanças com o roteiro que eu estava tentando fazer. E realmente tinha muito do que eu estava trabalhando: decadência, dissipação, enlouquecimento.

Eu já tinha trocado emails com o Milton Hatoum acerca do grande Dalcídio Jurandir, romancista paraense da segunda metade do século XX, que escreveu dez livros do seu chamado Ciclo do Norte. (...) Então, voltei ao Milton para falar sobre o “Órfãos”. Rapidamente entendi que grande parte da produção deveria se passar em Belém, minha musa, mesmo que nunca falássemos ou mostrássemos no filme que ali era Belém. Belém é uma cidade mágica; uma cidade de muitas épocas; a melhor comida do Brasil; de gente sem afetação, que conversa sobre literatura numa esquina de bar; e celeiro de uma tradição visual muito forte, de onde vieram ou beberam importantes fotógrafos e artistas plásticos brasileiros.

TR: Essa é sua primeira ficção; como foi essa transição de um "gênero" pro outro? Acha que é episódica ou pretende se manter mais próximo a um "tipo" de filme?
GC: Eu quero voltar a fazer documentários quando estes forem projetos com um dispositivo, isto é: a forma do filme, o seu processo, é o que há de principal - e não o seu tema. Não quero fazer mais filmes sobre “isso” ou “aquilo”, mas sim filmes que tenham um processo, um formato que explore linguagem narrativa e/ou visual.

Na ficção, eu gostaria de fazer outros filmes que sejam apoiados no trabalho dos atores e também na construção de uma atmosfera singular, com as equipes de arte e de fotografia.
Diz-se que fazer documentário é ir ao encontro do outro, e que fazer ficção é falar de si. Como "eu sou um outro” quero tentar alternar entre os dois gêneros, e assim deixar que eu seja tantos.

TR: Não encontrei referências suas de outras produções que não documentais e, ao mesmo tempo, o filme parece feito por alguém com muita experiência. Você participou de algum outro projeto ficcional antes?
GC: Eu só havia participado de roteiros, e nenhum havia sido filmado. Tinha produzido dois comerciais, e dirigido um videoclipe, mas tudo muito rápido. Eu nunca havia embarcado numa “construção” ficcional, de ter que pensar tom, conversar referências com os departamentos de arte, figurino e fotografia. Tudo isso me assustou muito no começo. Mas eu tive muita sorte em ter sempre ao meu lado, ao longo de todo o processo desse filme, a minha ex-mulher, Amora Mautner, que tem muito talento e experiência em fazer justamente isto: pesquisar, discutir e colaborar com equipes na criação de “mundos ficcionais”. Ela foi fundamental pra que eu entendesse, não o que eu gostaria de fazer, mas sim como liderar este processo com muita ética de trabalho, uma certa megalomania, estando muito aberto aos colaboradores e fazendo-os parte integral de tudo. Por tudo que ela me ensinou e pelo amor que vivemos, e que tanto me inspirou a contar esta história, o filme é dedicado a ela.


TR: Como foi o processo de construção de personagens e preparação dos atores? Você já tinha ideia do elenco desde o início? 
GC: Eu sempre soube que a Florita teria que ser a Dira. Sobre o Arminto, eu fui levado ao Daniel pela loucura e doçura dele. Ele foi um parceiro maravilhoso, um profissional exemplar, e uma referência como pessoa bacana e íntegra. Depois achamos a Mariana Rios, que foi também de uma dedicação admirável. O Adriano Barroso (Denísio Cão) eu sempre quis escalar, pois o conhecia de Belém, onde ele é um importante ator e produtor cultural. De resto havia o elenco de Belém, que eu queria muito ter no filme, inclusive para falarmos o português na segunda pessoa de maneira correta.

Fizemos uma preparação no Rio (de Janeiro) com a Maria Silvia Siqueira Campos e com o Marcelo Grabowsky, e lá em Belém (nos rios) continuamos este trabalho, mas tendo conosco também o mestre em butô Tadashi Endo. Foi muito bacana, e nos ajudou a chegar numa energia conflitante e numa tensão que eu queria para as atuações. O desafio era fazer melodrama, com atuações fortes, mas não melodramáticas. 

TR: Quais são suas referências cinematográficas? E literárias, já que este é um filme que parte de um livro?
GC: "Last Days" do Gus Van Sant foi referência pra atuação e pro desenho de som; Malick foi referência pra câmera, mas acho que não ficou muito; David Lean foi referência pra fotografia, foi importante na composição os planos abertos. A ideia era fotografar a Amazônia como um deserto; Apitchapong foi referência pro verde e pras lendas, mas não acho que tem muito a ver.

TR: Para terminar, algum projeto futuro em mente?
GC: Estou trabalhando num roteiro há um ano, talvez agora ele ande. Uma história de pai e filho aqui no Rio.

*Veja aqui o trailer do filme!
**A crítica está aqui no Café, logo abaixo e neste link.

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