Pasolini*
Falar sobre a produção artística
de Pasolini é sempre complicado. O poeta, diretor, roteirista, produtor de
filmes e obras polêmicas e provocadoras quer dizer sempre muito mais do que
expressa em seus filmes, ultrapassando o literal das sequências controversas. Entretanto, pouco se fala sobre quem foi o criador de Saló (1975), Decameron (1971) e Teorema (1968),
para além de sua arte. Neste Pasolini
de Abel Ferrara, se fez exatamente isso: falar do homem, com Willem Dafoe (O grande Hotel Budapeste, 2014; Anticristo, 2009) o personificando em
seus últimos dias de vida.
Nunca sabemos quando vamos
morrer. Para a nossa sorte – ou azar, a depender do ponto de vista –
provavelmente seremos pegos de surpresa e se criarão razões e mitos em torno do
fatídico dia: um olhar distante, uma fala, uma declaração qualquer,
coincidências. O que se diz aqui, nos últimos dias de Pier Paolo Pasolini é
nada além de uma tentativa de resgatar estes momentos sem qualquer misticismo, mas
com uma brilhante encarnação do ator americano
no papel do diretor. A grande questão aqui talvez seja essa, sem grandes
pretensões ou expectativas: a transformação de Willem Dafoe no mestre – a
semelhança física por si só é gritante – ao tempo que vemos recortes de sua
vida em família, entre amigos e com suas liberdades e perigos que a
homossexualidade poderia assegurar à época, na Itália dos anos 70, católica
como é até hoje.
O diretor italiano é pouco
conhecido atualmente. Assassinado em 1975, não foi responsável por uma escola
de cinema, mas deixou sua marca incontestável na história com filmes considerados
polêmicos até hoje. Mas, apesar de sua importância para as artes e de seu pouco
espaço na mídia contemporânea, Abel Ferrara se vale do pressuposto da
familiaridade, de que teríamos um conhecimento prévio sobre o diretor e nos
traz um perfil íntimo. Para o grande público, pode ser um problema.
A construção do filme, um emaranhado
de situações que ilustram o que acontecia em seu último dia, parecem soltas
demais, não criando necessariamente uma narrativa, mas um caleidoscópio daquele
período. Esta dimensão variada, por outro lado, pode ser interpretada como a de
uma vida qualquer, como a nossa, em que temos projetos em andamento, relações
familiares, amorosas, nossa participação no mundo – sempre no tempo presente.
Se os fragmentos não constituem um todo de início, meio e fim, a parábola do
que seria um de seus futuros filmes, montada em paralelo com a vida real do protagonista, deixa clara
sua conclusão sobre nossa mortalidade. E, como qualquer biografia de gente de
verdade, entramos sabendo o que esperar do final.
Há algumas discrepâncias quanto a
seu desfecho, especificamente sobre a forma como o diretor veio a morrer e isso
me deixou confusa sobre no que acreditar. Os relatos oficiais indicam
diferenças, mas o grosso da ação que culminou em sua morte não muda tanto. O
fato é que era homofobia antes, como ainda é todos os dias por aqui. Se o filme
nos deixa um tanto perdidos quanto à sua forma, talvez a proposta de deixar em
aberto indicando a imprevisibilidade da vida, a certeza de que provavelmente
não cumpriremos tudo o que nos propormos a fazer e, claro, deixaremos saudades
seja uma conclusão em si.
Em uma das falas de Dafoe, original de Pasolini:
escandalizar é um direito. Ser/estar
escandalizado, um prazer. É este o retrato que vemos de um homem sério e
certo do que propõe em seus filmes – a crítica ao capital, às hipocrisias, à
religião, sempre pelo exagero – e é o trunfo do filme: Dafoe encarna o mito,
seja na forma de andar, de falar, na expressão corporal, nas relações com as
pessoas. Talvez aqueles que não conhecem a obra de Pasolini fiquem perdidos sem
saber a dimensão deste homem para as letras e para o cinema – Ferrara dá
indícios de sua relevância, mas não aprofunda, deixando para os espectadores a
‘árdua’ tarefa da cinefilia e da pesquisa. Sendo um filme de fragmentos, pode
incomodar quem busca a narrativa tradicional que explica demais, direciona e
nos faz acompanhar passivamente seu trajeto. O jeito é nos deixar levar,
enxergar essa homenagem – um tanto estranha por se falar do momento da morte,
mas condizente com um período em que questionamos nossos comportamentos e
preconceitos – como uma abertura para a intimidade de um diretor maldito e
majestoso.
*Esta crítica está no Blah Cultural! :)
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