Pasolini*

by - novembro 06, 2015

 
Falar sobre a produção artística de Pasolini é sempre complicado. O poeta, diretor, roteirista, produtor de filmes e obras polêmicas e provocadoras quer dizer sempre muito mais do que expressa em seus filmes, ultrapassando o literal das sequências controversas. Entretanto,  pouco se fala sobre quem foi o criador de Saló (1975), Decameron (1971) e Teorema (1968), para além de sua arte. Neste Pasolini de Abel Ferrara, se fez exatamente isso: falar do homem, com Willem Dafoe (O grande Hotel Budapeste, 2014; Anticristo, 2009) o personificando em seus últimos dias de vida.

Nunca sabemos quando vamos morrer. Para a nossa sorte – ou azar, a depender do ponto de vista – provavelmente seremos pegos de surpresa e se criarão razões e mitos em torno do fatídico dia: um olhar distante, uma fala, uma declaração qualquer, coincidências. O que se diz aqui, nos últimos dias de Pier Paolo Pasolini é nada além de uma tentativa de resgatar estes momentos sem qualquer misticismo, mas com uma brilhante encarnação do ator americano no papel do diretor. A grande questão aqui talvez seja essa, sem grandes pretensões ou expectativas: a transformação de Willem Dafoe no mestre – a semelhança física por si só é gritante – ao tempo que vemos recortes de sua vida em família, entre amigos e com suas liberdades e perigos que a homossexualidade poderia assegurar à época, na Itália dos anos 70, católica como é até hoje.
O diretor italiano é pouco conhecido atualmente. Assassinado em 1975, não foi responsável por uma escola de cinema, mas deixou sua marca incontestável na história com filmes considerados polêmicos até hoje. Mas, apesar de sua importância para as artes e de seu pouco espaço na mídia contemporânea, Abel Ferrara se vale do pressuposto da familiaridade, de que teríamos um conhecimento prévio sobre o diretor e nos traz um perfil íntimo. Para o grande público, pode ser um problema.

A construção do filme, um emaranhado de situações que ilustram o que acontecia em seu último dia, parecem soltas demais, não criando necessariamente uma narrativa, mas um caleidoscópio daquele período. Esta dimensão variada, por outro lado, pode ser interpretada como a de uma vida qualquer, como a nossa, em que temos projetos em andamento, relações familiares, amorosas, nossa participação no mundo – sempre no tempo presente. Se os fragmentos não constituem um todo de início, meio e fim, a parábola do que seria um de seus futuros filmes, montada em paralelo com a vida real do protagonista, deixa clara sua conclusão sobre nossa mortalidade. E, como qualquer biografia de gente de verdade, entramos sabendo o que esperar do final.

Há algumas discrepâncias quanto a seu desfecho, especificamente sobre a forma como o diretor veio a morrer e isso me deixou confusa sobre no que acreditar. Os relatos oficiais indicam diferenças, mas o grosso da ação que culminou em sua morte não muda tanto. O fato é que era homofobia antes, como ainda é todos os dias por aqui. Se o filme nos deixa um tanto perdidos quanto à sua forma, talvez a proposta de deixar em aberto indicando a imprevisibilidade da vida, a certeza de que provavelmente não cumpriremos tudo o que nos propormos a fazer e, claro, deixaremos saudades seja uma conclusão em si.
Em uma das falas de Dafoe, original de Pasolini: escandalizar é um direito. Ser/estar escandalizado, um prazer. É este o retrato que vemos de um homem sério e certo do que propõe em seus filmes – a crítica ao capital, às hipocrisias, à religião, sempre pelo exagero – e é o trunfo do filme: Dafoe encarna o mito, seja na forma de andar, de falar, na expressão corporal, nas relações com as pessoas. Talvez aqueles que não conhecem a obra de Pasolini fiquem perdidos sem saber a dimensão deste homem para as letras e para o cinema – Ferrara dá indícios de sua relevância, mas não aprofunda, deixando para os espectadores a ‘árdua’ tarefa da cinefilia e da pesquisa. Sendo um filme de fragmentos, pode incomodar quem busca a narrativa tradicional que explica demais, direciona e nos faz acompanhar passivamente seu trajeto. O jeito é nos deixar levar, enxergar essa homenagem – um tanto estranha por se falar do momento da morte, mas condizente com um período em que questionamos nossos comportamentos e preconceitos – como uma abertura para a intimidade de um diretor maldito e majestoso.

*Esta crítica está no Blah Cultural! :)

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