Saí de Força Maior com uma sensação estranha. Fui assistir com uma amiga e conversamos na saída, como sempre. Minhas respostas eram evasivas, fazia tempo que não via algo que me deixasse numa nebulosa, quase sem conseguir digerir ou entender plenamente. Não é um filme difícil. Você consegue sentar e assistir, compreender a história, as falas, interpretações, fotografia, tudo. A percepção acontece e já dá pra dizer se teve algum impacto em você ou não, logo de cara. É aquela velha história de que uma obra de arte se define pela impressão que causa em quem a vive – é tudo sempre sobre emoção. Sem ela, não é arte.
Força Maior conta a história de uma jovem família sueca que resolve
passar uma semana nos Alpes franceses esquiando. De classe média alta, os pais
na casa dos 30 anos e com filhos pré-adolescentes aproveitam a estação de esqui
de luxo. São quase como um comercial de margarina, perfeitos, bonitos, felizes.
Durante um almoço, presenciam uma avalanche próxima ao restaurante e o pânico
de um grave acidente será a válvula de escape para uma transformação desse
núcleo familiar.
Quais são nossos papeis na vida? Como nos definimos? Que funções devemos preencher nos formulários? Hoje o meu teria ‘solteira’ e ‘sem filhos’. Minhas obrigações são basicamente comigo e com aqueles por quem tenho apreço, mas nenhum deles depende de mim ou do que provejo para viver. Minha família – irmã, pais, etc – é autogerida e cada um responde por si. Somos todos maiores e eu sou a caçula – não que signifique muito quando se é adulto, mas ainda assim, de alguma forma, entendemos e cuidamos, cumprimos com a manutenção dessa estrutura na medida do possível.
Proteção, segurança, cuidado,
carinho, amor, atenção. São as palavras definidoras de relacionamentos, mas não
são garantia de futuro ou efetividade em qualquer circunstância. O que você
faria se vivesse uma situação de perigo iminente? De catástrofe natural? De
acidente de avião? Colocaria a máscara em você primeiro – aliás, como manda o
regulamento – ou defenderia seu ente mais amado antes? Ninguém sabe essas
respostas. A maioria vai dizer que protegeria o outro. E como isso nos define –
de verdade? Como nós nos julgaríamos se não respondêssemos à altura do que
prometemos um dia para alguém – até para nós mesmos, diante de um inesperado e
aterrorizante presente? O que significa não atender a essas expectativas? Acredito que somos um conjunto de percepções, impossíveis de definir como um padrão de comportamento baseado em situações de rotina e controle. Diante do inesperado, talvez uma resposta diferente não deva ser julgada como inaceitável. Mas – ao mesmo tempo – é impossível não pensar nisso.
O filme faz isso de forma brilhante. Vencedor de 29 prêmios com outras 25 indicações, em duas horas e muito humor mordaz, ficamos perdidos entre que sentimentos devemos ter diante do que vemos. Sem entrar em detalhes – porque esse filme deve ser contado o mínimo possível – compreendemos a reação da mãe, entendemos o pai, até porque o filme prima por fugir daquele maniqueísmo barato e até as reações dos personagens secundários, seus amigos, são interessantes. O filme ainda vai muito além: nos põe em xeque, faz a velha questão do ‘se fosse comigo’ e por isso saí sem conseguir dizer muita coisa. Para o público brasileiro, a atuação às vezes seca e cheia de silêncios nos traz a certeza de que é algo diferente que se passa ali, além de culturalmente estarmos distantes.
Robert Östlund, o diretor com 3 longas de ficção no currículo e alguns documentários, indica que não precisa mais do que isso para fazer uma grande obra. A maturidade da montagem e a trilha imponente
nos preparam para um suspense que não nos deixa respirar - e esse nem é o foco do
filme. A cada dia de esqui a agonia aumenta, não sabemos se aguentaremos viver
aquele desconforto, e ao mesmo tempo é impossível piscar – morbidamente precisamos
ver até onde eles serão capazes de ir e rimos quase nervosos a cada sequência. A
fotografia, que me incomodou um pouco no início com a grandiosidade do branco e
quase estoura tudo em nossa frente, faz isso intencionalmente para nos mostrar
que toda essa claridade não significa – de forma alguma – transparência, e aí se
torna maravilhosa. Da mesma forma, a ênfase no azul e tons frios dos figurinos, os planos familiares
extremamente calculados simbolizam uma perfeição inútil daquele comercial lá
citado – que só existe na superfície.
No fim das contas, não há papeis definidos. As famílias não são como as de 40 anos atrás,
pré-moldadas em parâmetros fixos numa rotina de dependência emocional e
financeira. Mas, ainda sim são famílias, com suas funções primordiais – nas famílias
ocidentais urbanas – voluntariamente estabelecidas. Hoje talvez tenhamos mais liberdade de definir quem somos, escolher
nossos caminhos, mesmo que uma ruptura se torne um grande problema. O fato é
que saí do filme lá atrás pensando e há um tempo passo aqui para dividir um
pouco. Fico na certeza absoluta de que vou revê-lo, preciso reviver o humor
ácido, os diálogos que parecem banais, mas representam uma grande e honesta sacada
de como somos, de como devemos ser ou de como outros supõem que sejamos. É um
programa indispensável, crítico e delicioso.
1 Comentários
A amiga no caso, foi eu! Hehehe... Sim o filme é muito bom! Afinal a Força Maior existe e está presente dentro de todos nós. Seja ela o que for: medo, instinto, essência, intuição... O mais importante é que não podemos negá-la, nem enganá-la, pois de uma forma ou de outra, ela irá nos arrebatar.
ResponderExcluirBjos e até a próxima sessão!