Numa aula de ética voltada para o trabalho, o professor falava que um certo filósofo entendia que só poderia considerar alguém ético, depois de sua morte. Aí faríamos um apanhado de sua vida, como um currículo pessoal, levantando seus dilemas e resoluções tomadas. Enão, poderíamos qualificá-lo como qualquer coisa. Assim, passamos a vida acima de qualquer suspeita, sem sabermos como definir-nos, mas com isso, carregando uma ‘culpa’ de estar sempre tentando fazer o bem, para que no fim, ganhemos um atestado de boa conduta post-mortem.
Falo disso, porque tenho uma dificuldade em estabelecer ídolos. Grandes músicos, políticos, homens e mulheres das artes e esportes perderam um pouco desse glamour, dessa aceitação pelo que produzem e eu mesma fico pensando se aqueles que acho incríveis são realmente assim. Não sei se podemos chamar isso de perda da inocência, da ingenuidade que é essa facilidade em acreditar no outro, mas hoje contamos nos dedos quem admiramos fortemente. Pensando no cinema e nos diretores vivos, um que me ganhou e que espero que produza na mesma frequência de Woody Allen é Wes Anderson.
Antes de O Grande Hotel Budapeste, houve Moonrise Kingdom, um filme delicioso sobre peripécias infantis de dois amigos que resolvem fugir de casa. Ali se concentra muito do que eu gosto de ver: narrativa bem elaborada, ótimos diálogos, um ‘tempo’ diferente, um cuidado especial com a fotografia e a direção de arte, ótima trilha sonora – características que a direção garante, mantendo um conjunto de referências presentes em toda a filmografia do autor, o identificando de cara nos primeiros planos, sem precisar ler os créditos. É esse conjunto de elementos que um colega meu de trabalho chamou de ‘estética’ e que as escolas de cinema entendem como ‘cinema de autor’, basicamente a mesma coisa.
Em Grande Hotel, todo esse cuidado permanece, assim como o elenco de atores consagrados, cada vez mais numeroso nos filmes do diretor. Agora a história se centra num personagem que conta como se tornou o dono deste hotel grande e notório por abrigar a elite intelectual e solitária do mundo. A narrativa pausada e dividida em partes cansou dois de meus amigos, mas para mim só interessou mais: cada seção tem um título com um porque bem definido, não é uma questão enigmática e a graça é perceber como a construção de mundo é detalhada e perfeita, não temos mesmo do que reclamar. Talvez seja essa a graça dos filmes do diretor: o cuidado na elaboração dos diálogos e a construção toda em volta, cheia de detalhes e chaves e peculiaridades como uma espécie de jogo da vida, em que a cada jogada descobrimos mais regras e novidades – como uma nova sociedade que acabamos de visitar e passamos a conhecer sua cultura.
Os filmes de Wes Anderson têm mesmo essa particularidade, o sistema de coerências como o professor de roteiro costumava nos ensinar, onde cada elemento da história tem fundamento, ainda que pareça surrealista se pensarmos em nosso mundo real. É um encadeamento de situações, detalhes, enfeites, regras e conversas onde tudo faz sentido, onde não ‘sentimos a cadeira’, ou que ‘a pipoca acabou’. É o cinema em que basta a garrafinha de água do lado e nada mais; toda a concentração vai pra tela que nos leva para essa deliciosa distração em cento e poucos minutos. É um filme que mantém essa aura de ingenuidade quase infantil, como contos de aventura mais uma vez, em que não ficamos satisfeitos com suas cinco partes, mas queremos mais cinco, pra ver que tipo de elaboração vai surgir a partir dali.
Imagino que para os atores do filme, (Jude Law, Edward Norton, Jason Schwartzman, Harvey Keitel, Bill Murray, Ralph Fiennes, Mathieu Amalric, Adrien Brody, Willem Defoe, Jeff Goldblum, Tilda Swinton, Lea Seydoux e vários outros incríveis que o imdb pode completar aqui) foi muito divertido fazer. Alguns só fizeram pontas, papeis pequenos que funcionaram como um fôlego a mais, uma surpresa, porque nem o cartaz eu vi. Como nos filmes de Woody Allen, Almodóvar, Karim, Polanski e outros, não importa tanto sobre o que é ou quem está nele, muito provavelmente vai ser bom. Então, cada aparição era um presente, como deve ter sido o encontro dessa turma toda nos sets, quando contracenavam. Os diálogos merecem um estudo de caso, bem como a construção dos personagens principais; é o tipo do filme ‘independente’ que carrega tanta riqueza de detalhes que parece que estamos em Hollywood, só que melhor.
Não dá pra seguir o que o filósofo que esqueci o nome diz. Não tem como esperar cada escorregada de um ídolo para tirar seu título. De repente precisamos mesmo baixar a guarda e acreditar, não importa que possível besteira eles façam no futuro. Polianamente falando, pode acontecer com qualquer um (vide Woody, Polanski, Hitchcock...mas isso é outra história...).
Vamos seguir acreditando nas artes pelo menos, em gente como este diretor que prova a cada estreia um talento único para filmes engraçados, ricos, inteligentes e doces. Não à toa, Budapeste levou o grande prêmio do júri em Berlim. Que venham mais mundos, frutos ou não de adaptações literárias – essa veio inspirada por um texto de Stefan Zweig – mas com a criatividade que vai desde a escolha na fotografia, a planificação do roteiro até o site de divulgação. Como os textos de jornais costumam reduzir: imperdível.