Eduardo Coutinho

by - fevereiro 03, 2014


Quando estudei cinema brasileiro, era obrigatório conhecer o Cinema Novo e seus diretores grandes e intelectuais, Humberto Mauro com a divertida Velha a fiar e sempre, os documentaristas contemporâneos. De alguma forma o Brasil – talvez pela história política e riqueza cultural e natural, vai saber – desenvolveu essa categoria de cineastas do real que não perde em nada (acho até que ganha) pros internacionais. Então, em todas as listas destes mestres tem um que se destaca, Eduardo Coutinho.

Sou fã de documentários desde criança, quando assistia os filmes da National Geographic com baleias pulando em mares distantes, leopardos correndo em pradarias, elefantes e girafas. Dormia assistindo isso aos domingos de tarde no sofá de casa, em algum canal que não me lembro. E a voz forte e tranquilizadora do narrador, pausadamente falando ‘agora o leão ataca sua presa’ enquanto toda a cadeia alimentar aparecia sangrando na tela. E dava sono, mas era – e ainda é – muito legal de assistir.

O tempo passou e se antes as cenas já eram incríveis, hoje são surpreendentes. O HD veio, as grandes lentes e as câmeras desenvolvidas especialmente para estas cenas de proximidade e velocidade nos deixam boquiabertos e quase esquecemos o narrador. Ele também se especializou e os filmes são deliciosos, dão água na boca mesmo, de tão gostoso que é assisti-los. E olha que são só bichos vivendo.

Do outro lado, tem aqueles documentários de pessoas, muitos muito chatos, com depoimentos longuíssimos, entrevistas frias, quase um interrogatório. Essas biografias de alguém famoso costumam encher um pouco o saco e valem pelo que há entre as entrevistas: as cenas de shows, filmes ou qualquer coisa que o biografado fez de relevante. Dá pra ver, claro, mas não é grande coisa. É por causa desses que muita gente diz que documentário não é filme, porque não conseguem se conectar com o que está na tela e tudo parece uma grande reportagem.

Mas o extraordinário veio, ainda bem. Eduardo Coutinho fez uma escola de cinema sem querer. Ele trouxe os depoimentos mais emocionantes que já vimos na tela, de gente que nunca ouvimos falar. Ele conseguiu contar histórias imensas de pessoas lindas, como muitas que conhecemos e não sabemos sua dimensão. Coutinho conversava com seus entrevistados, ele tinha um dom de puxar assunto e deixar a pessoa à vontade, como se estivesse em casa... algumas vezes eles estavam e a visita era o diretor.

Terminei o curso de cinema com um documentário. Queria mostrar Salvador por quem vivia nela. A cidade vazia é só cartão postal. Conheci pessoas especiais, um pedaço bem pequeno de suas histórias e vi que era isso o que eu queria fazer, eu queria saber da vida dos outros. Anos depois, fiz a pós em documentário e encontrei Coutinho ao vivo. Acho que eu sempre aparecia nas aulas dele como um cachorro babão em frente a um forno de frango de padaria. Eu queria tudo dele, queria saber tudo, queria ouvi-lo falar eternamente sobre cinema, sobre seus filmes, sobre a vida, sobre qualquer coisa que ele quisesse falar. Era legal vê-lo fumando horrores – imagine – numa sala fechada, sendo que só ele podia fumar. Era legal encontra-lo nas sessões dos festivais de documentário todos os anos e assistir filmes na mesma sala. Era legal assistir palestras. Porque era um cara inteligente e era uma pessoa normal. E seus filmes sempre tinham algo único, emocionante e nunca morno.

Uma amiga me disse ontem que quando eu conto um filme legal, as pessoas ficam com vontade de assistir, como se fosse a oitava maravilha do mundo. Não é isso, é só porque eu gosto muito mesmo de cinema, de entender a produção, conhecer bastidores e histórias e, mais importante, as histórias dentro das histórias. Coutinho tem uma filmografia rica de personagens e experiências que atendem a um público vasto que merece assisti-la. Seus filmes são sobre as pessoas e somos quase guiados por elas, com uma naturalidade que nem a câmera parece incomodá-las. A construção dos filmes é tão sensível que perdemos a noção de tempo e no final o que vimos é muito mais do que histórias de um monte de gente; nos identificamos com elas, vemos um espelho dessa sociedade diversa em diferentes espaços, vemos jogos de narrativas e ainda – como se não bastasse tudo – são aulas de cinema.

Coutinho morreu num dia que era pra ser um dos mais bonitos do ano. 2 de fevereiro é uma data importante, uma festa linda na minha cidade, dia de branco e azul e Yemanjá. Dia de jogar rosa branca no mar e agradecer pelo que se tem. Dia de encontrar os amigos e frequentar um pouco daquela energia positiva que uma festa de paz traz. E nesse mesmo dia, aqui no Rio, com uma brutalidade imensa, meu diretor favorito se vai. Eu sou só mais uma que lamenta e fica com o coração apertado como se perdesse um familiar, que não conhecia a tragédia particular de um grande homem que manteve sua residência fechada em um drama imenso e que não fazia parte dessa mídia de celebridades. Como eu, tem muita gente sofrendo com isso, com a perda de um mestre, alguém que servia como base para o que queremos fazer e o Cinema – com letra maiúscula que significa todo o cinema do mundo inteiro – perdeu um de seus maiores criadores.

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1 Comentários

  1. Imagino como você Tati , que saiu daqui de Salvador de sua casa em busca deconhecer cada detalhe da sua profissão e acrescentar em você mais conhecimentos, e ver de perto esse mestre que. lhe encantou , lhe estimulou e hoje fica dificil acreditar ,que justo ele se foi assim.
    Mas o importante é que você conseguiu conhecer de perto esse mestre ,e tenho certeza que ficou com uma riqueza ainda maior de conhecimentos, aprendizado, que ninguem vai tirar de você , essa herança tão bonita como você se refere a ele.
    Tenho certezaque onde ele está. ,continuará brilhando..
    Bjus filha.

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