Elena era diferente. Era intensa,
uma artista com alguns problemas e extremamente sensível, como sua mãe e irmã.
Elena sumiu e mesmo sem tê-la conhecido, sentimos sua ausência. Elena se
tornou parte de nossa família quando virou filme.
Quando estava cursando a pós de
Documentário, os professores insistiam para que fizéssemos filmes que só poderiam ser feitos por nós.
Ainda que a premissa sirva para qualquer produção artística, o que eles queriam
dizer era para falarmos de um tema nosso, que nos tocasse. Essa proposta, cada vez mais
penso nisso, é o fator transformador do documentário brasileiro. A partir do
momento em que seu criador decide falar de algo seu, essa esfera particular
automaticamente – quando bem feito – deixa de ser uma exposição do próprio
umbigo e passa a se relacionar com o universo do espectador. E aí, as
referências individuais do autor conversam com as nossas, nos tornando
participantes daquela história.
Reforço como característica no
documentário brasileiro porque é onde vejo mais obras com essa cara. Perdi o É Tudo Verdade deste ano, mas acompanho
há algum tempo as estreias documentais e é isso o que se confirma e parece
interessar o grande público. Citando alguns que seguem a linha e que me vieram
agora à cabeça: Santiago (João Moreira Salles), Cabra Marcado pra Morrer (Eduardo
Coutinho), Passaporte Húngaro (Sandra Kogut), 33, Kiko Goifman, Rocha que Voa (Eryk Rocha), Di-Glauber
(Glauber Rocha), Abuelos (Carla Valencia D'Avila, Chile). Ano passado, Sarah Polley trouxe Stories we tell, um documentário canadense que falava sobre sua
mãe, tentava descobrir um pouco mais dela, resgatando em sua família e amigos
um passado hoje perdido. A narração de seu pai deixa tudo mais bonito e o jogo
de encenação com imagens de arquivo completa visualmente o que quase não
parecia faltar. É o que mais se aproxima deste.
Em Elena é como se a diretora descarnasse o tema. É isso mesmo, ela se entrega numa correspondência com a irmã, cujo direcionamento prescinde do espectador. Toda a voz off fala para Elena como numa carta, em que Petra, a diretora, se dirige a você, à irmã. Somos espectadores de uma história de amor sem fim, familiar e fraterno, de uma perda irreparável que já passamos ou passaremos em nossas vidas de alguma forma. E aí, o cotidiano delas se transforma na vida de todos. Em paralelo, o filme ilustra uma tentativa de compreender o que aconteceu, o filme indica uma busca pela justificativa ou aceitação para o fim da irmã, para saldar ou, pelo menos, amenizar a dor e a saudade. Petra faz um desenho aprofundado da irmã, mas que perpassa por ela própria, sua mãe e seu pai, reforçando a ausência do último. Esse retrato de família dá indícios dos problemas das três mulheres, sua formação cultural e social e nos deixa livres para induzir e interpretar o porquê da tragédia.
Esses perfis são o panorama, a superfície do filme. Sua construção é feita como linhas de um tecido que, olhando de perto, percebemos o traçado dos fios, seus cruzamentos e rupturas. Aqui conseguimos ver a transformação da perda em poesia, com uma montagem que intercala imagens de arquivo – quando criança, as irmãs ganharam uma câmera doméstica – com Petra criança, a mãe e Elena adulta em NY, Petra andando sozinha pelas ruas, buscando nas esquinas americanas, vestígios de uma antiga presença e por fim, encenações leves, soltas como passos de dança, que pontuam o filme. São passados distintos que se cruzam, reforçando a proximidade das irmãs, a necessidade que uma tinha da outra e de como isso foi suficiente para moldar o futuro da caçula. A trilha sonora nos absorve, mantendo esse clima de saudade, amor e até de uma melancolia que parece fazer parte de todos daquela família.
À parte a vida real
dos personagens, o filme persegue uma aura
onírica que expande o que seria um simples relato, uma carta. Os elementos que compõem o
imaginário de Petra sobre Elena traduzem duas irmãs em figurinos e performances
de sonhos, seja Elena em suas apresentações teatrais – que parecem um prenúncio
do fim, sempre tensas – ou Petra com seus passeios, olhares e a própria composição
do que vemos. Saímos com coração apertado, sofrendo por elas e por nós, com
questões que sequer conseguimos formular. Elena nos deixa com vontade de saber
mais, mais dessas mulheres que se mostraram tanto, que se abriram para todos. É
um filme de amor, uma das homenagens mais bonitas e honestas que eu já vi, com
uma carga de sentimento que quase nunca aparece em documentários. É também uma
aula de cinema de uma menina em seu primeiro longa, com uma liberdade de
expressão que encerra aquelas questões ultrapassadas do que é e o que
não é documentário, do que pode e não pode. Elena é pra ser visto despreparado
mesmo, é pra sentar na poltrona e se entregar ao destino do filme. Numa sala
lotada num sábado à noite no Rio de Janeiro, ouvia-se o filme, silêncio e lágrimas. Na saída, vi em todos uma satisfação
se essa for a palavra, de ter participado. Talvez tenhamos entendido que foi importante ter visto o filme, que a libertação de Petra foi ter reencontrado e redescoberto sua irmã, agora que se tornou mais velha do que ela.
Aqui o site do filme!
Aqui o site do filme!