Laranja Mecânica, Stanley Kubrick
Continuando o livro de Polanski,
cheguei ao momento em que ele conta a morte de sua mulher, Sharon Tate. A atriz,
grávida de 8 meses, foi assassinada em casa pela família Manson em 1969 na Califórnia. Charles Manson é um maníaco hippie que criou uma seita nos anos
60, cometendo uma série de assassinatos. Eu conhecia a
história há algum tempo e ela sempre me remete à cena do estupro de Laranja Mecânica, então decidi rever.
Laranja é uma das adaptações literárias (do homônimo de Anthony
Burgess) mais cultuadas do cinema moderno. Se você for a qualquer videolocadora
– considerando que elas ainda existem – estará na prateleira de filmes cults ou clássicos modernos ou ainda, cinema
de autor – Stanley Kubrick. A estória gira em torno de Alex (Malcom
McDowell), jovem líder de uma gangue que pratica a ultraviolência – assaltos,
estupros, arrombamentos, espancamentos – encorajados por drogas. Após matar uma mulher, Alex é sentenciado a 14 anos e se candidata a um tratamento
correcional experimental oferecido pelo governo. Sai da prisão dois anos depois,
avesso à violência ao limite da náusea e pensamentos suicidas. Ao voltar para casa, descobre que ali não é mais seu lugar, reencontra acidentalmente suas vítimas na rua e se torna, ele mesmo, vítima delas.
A importância do filme está tanto no texto quanto
em sua adaptação. Kubrick manipula as características de Alex, o tornando
simpático em todo o seu sadismo; aprendemos a gostar desse sujeito sarcástico
que nos seduz com o olhar, com a liderança do grupo e a narração irônica, com
neologismos próprios à geração jovem. O
Alex de Burgess, por outro lado, é menos cativante, conforme conta Pauline Kael
em sua crítica em 72. Ela diz que no livro Alex atropelava animais, espancava
outros presos e gostava de garotas de 10 anos. Foi dela a conclusão de que nos filmes, somos gradualmente condicionados a aceitar a violência como
um prazer sensual. Kubrick faz isso com precisão – ao tempo que nos traz um
protagonista-vilão que se torna simpático apesar do que provoca, pinta todos os
outros personagens (exceto o Ministro do Interior – outra figura sedutora)
literalmente com tintas carregadas. São caricaturas de pessoas, estridentes,
barulhentas, irritantes, cheias de maquiagem, cabelos coloridos e figurinos
esdrúxulos, quase saídos de um filme de David Lynch. Ou estão à beira da
passividade, como os pais de Alex, ou ao ponto de um surto psicótico, como o
escritor, a dona do spa, o histérico diretor da prisão. É impossível estar ao lado deles.
A fotografia dos filmes de
Kubrick parece ser sempre estratégica.
Com temas violentos, o diretor
combina poucos momentos de câmera na mão – a movimentação da subjetiva por si
só aumenta a agonia do espectador – com o oposto: planos quase fixos, com a câmera
correndo em trilhos, em travellings
lentos horizontais e aprofundando – com o apoio das locações e cenários – a
perspectiva, em busca da nossa ansiedade da descoberta. Como resultado,
queremos sempre ver. Para além de um bom filme de terror – em que ficamos entre
descobrir e sofrer junto às vítimas (o olhar entre os dedos) – Kubrick orienta nosso olhar sempre para o centro da tela, o importante está ali, como um
caminho que vai se afunilando, a frágil luz no fim de um túnel que nunca termina.
Queremos e precisamos saber o que acontece, mesmo entendendo que dali não sairá
nada bom.
Ainda nas cenas fortes, enquanto
Alex é o algoz há sempre alteração da velocidade do corte e da cena em si, esvaziando
a gravidade do que vemos, transformando o crime numa paródia teatral. Um
espancamento em slow com música
clássica às alturas remete mais a um espetáculo de dança do que chutes e socos; a animação quando ele ataca a dona do spa e até um ménage acelerado
ganha outras conotações. Nada ali parece muito sério, tudo é parte de um balé
sádico, mas infantil. Kubrick nos diverte ao invés de incomodar. Quando, por
outro lado, Alex se torna vítima das experiências como cobaia na prisão, quando revê seus pais ou reencontra suas vítimas, a câmera
espera: a montagem quase para, nos obrigando a uma contemplação que
beira o tédio, de ver a apatia do personagem transformado e a ruína de
suas expectativas, agora que está livre.
A relação entre o assassinato de
Sharon e o filme é clara: vemos a casa do casal invadida pela gangue, o marido
amarrado e preso e Alex cortando a roupa da mulher. Percebemos o horror do
acontecimento no olhar agonizante do marido: a câmera nunca se vira para nos
mostrar o óbvio, mas se concentra expressão torturada daquele que nada pode
fazer. Sharon foi assassinada na ausência de Polanski, que estava em Londres, à
espera do visto americano. A atriz estava em casa, com mais 4 amigos e amarrada
a um deles – provavelmente pensaram que eram um casal. Todos foram amarrados e assassinados
a facadas pelos Manson que, da mesma
forma, chegaram no meio da noite.
As reviravoltas do filme abrem um leque para o imprevisível: fica clara a crítica à sociedade, à forma de governo, a uma geração perdida. A ficção científica traduz uma época em que nada parece progredir, quando as transgressões são a regra. A moral se perde à medida que vemos a trajetória de Alex e não sabemos o que é pior, sua transformação em um robô programado para o asco à violência ou sua versão original nociva por natureza. A dualidade que encontramos no herói se torna o cerne do filme, automaticamente destruindo a importância das consequências de suas ações em um futuro infeliz.
As reviravoltas do filme abrem um leque para o imprevisível: fica clara a crítica à sociedade, à forma de governo, a uma geração perdida. A ficção científica traduz uma época em que nada parece progredir, quando as transgressões são a regra. A moral se perde à medida que vemos a trajetória de Alex e não sabemos o que é pior, sua transformação em um robô programado para o asco à violência ou sua versão original nociva por natureza. A dualidade que encontramos no herói se torna o cerne do filme, automaticamente destruindo a importância das consequências de suas ações em um futuro infeliz.
Visto pela primeira vez, o filme
é de um impacto tremendo para o espectador. Esteve na minha cabeça como um dos
melhores filmes que já vi por muito tempo. Numa segunda vez, isso se perde um
pouco, já que sabemos todas as alterações de percurso de Alex. Ainda assim, é
um filme para rever, mas confesso que em alguns momentos perdi o ritmo e a
excitação que o olhar de Alex provoca. Mas, a sedução é permanente: as
variações da nona sinfonia de Beethoven, nossa alegria quase masoquista de sofrer nos filmes de Kubrick, a fotografia
inteligente e narração triunfante são imortais. Não sei mais se está entre os meus dez
melhores filmes, mas entre os cem, com certeza.
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