Garapa

by - abril 30, 2010


Quando asistimos Estamira, imaginamos aquela mulher re-construída no documentário de Marcos Prado, com aquela voz, poder e miséria pouca vezes repetida no audiovisual. Neste documentário, mistura de dor, genialidade e belíssima fotografia, Estamira mais uma vez e tantas outras, pois é difícil esquecê-la quando a conhecemos assim. Garapa dói ainda mais. Agora José Padilha é quem nos mostra outra miséria, escondida nos programas assistencialistas do país... miséria que até sabemos existir, mas esquecemos diante do progresso sem ordem deste Brasil.

Garapa é a mistura de água com açúcar dada em mamadeiras às crianças pelas mães, no intuito de enganar uma fome permanente. As crianças deste filme, desnutridas, cheias de doenças e com a maior delas: uma falta de futuro, de fim útil, o excesso de ignorância e miséria reinantes, a pobreza que ninguém quer ver. Porque estamos acostumados a meninos de rua, viciados em crack, assaltantes, desesperados. O que não estamos acostumados é a apatia, o fim pelo fim, a aceitação por não se saber outro que são expostos nesse filme. É a crueza do Sertão, aquele de Vidas Secas lá atrás... atualizado nesse documentário em p&b.

Não importa onde estejam: se à margem de uma cidade maior, se no meio do nada, se atendidas ou não por algum programa do governo. Ainda há pessoas sem carteiras de identidade que sequer sabem sua própria idade; ainda há pessoas que vivem sem saber mesmo o que significa este verbo; ainda há pessoas sem sonhos. E as crianças deste filme, muito ou tão doloridas quanto seus pais, todos vítimas. Outro dia estive conversando com uns amigos e se falava do crescimento econômico do país, da possibilidade de se chegar do quase nada à classe média em pouco tempo, da ‘facilidade’ de entrar em uma universidade e todos acreditávamos nisso, nesta nação grande, aconchegante e democrática, de um presidente forte internacionalmente, ele mesmo o próprio retrato de esperança... há que assistir Garapa para perder um pouco dessa ilusão.

Ao mesmo tempo, enquanto alguém que estuda a arte, há um embate moral nessa história toda. Aprendi a defender o filme pelo que ele se propõe, por seu objetivo final, mas, como uma pedra no sapato, fica a questão da ‘exploração’ da imagem de quem só tem isso a que se agarrar. Essas três famílias passam fome. Uma equipe vai fazer um filme sobre a fome e os encontra como exemplo perfeito. Como é lidar com uma situação tão discrepante e depois voltar ao hotel, jantar, almoçar, tomar café com a impregnação do real a alguns quilômetros de distância? Como se manter próximo para filmar e distante para algum apoio? Como ignorar o assunto do filme que se faz e não prestar qualquer ajuda, ou ver a fome enquanto lhe sobra comida? Numa situação limite, foi dado um analgésico a uma criança com dor de dente. Mas é um detalhe diante do todo. Independente de uma assistência futura, de uma promessa de ajuda pós-filme... algo de culpa permeia minha cabeça sem nem ter feito parte desta equipe, ao mesmo tempo que defendo a produção e encaro a obra como pronta, ótima e útil e, que se houvesse algum assistencialismo prévio, não haveria filme. Dilemas.

As semelhanças em Estamira não são à toa. Não apenas a temática, a questão ética, quanto à parceria entre os dois diretores é permanente. Marcos Prado e José Padilha se reencontram aqui também, na fotografia, no cinema brasileiro direto, na aposta em filmes importantes. E é esse o cinema que permite a ‘não’-interação com o tema a filmar e que o torna tão íntimo para quem assiste e talvez até para quem participe. A vida daquelas pessoas é tão escancarada que percebemos que sequer onde moram as famílias têm privacidade. Como as cidades pequenas em que estão localizados, seus habitantes participam e têm opiniões a dar, reclamações, invasões. Vizinhos são sempre observadores de nossas vidas, como a câmera-olho que os permite nos visitar. E é essa exposição que evidencia a importância vital das mulheres nestas famílias. Invariavelmente elas se tornam protagonistas das ações, já que depende delas o parco sustento de todos, desde a preparação da garapa, a busca por água, o cuidado com os filhos, o recebimento do bolsa família, a visita a uma ONG ou até a defesa da própria situação frente às criticas de quem os invade. Aos homens, álcool, desilusão, despreparo, apatia, brigas, doenças e o cuidado mais como favor do que como obrigação aos filhos.

É um filme duro e importante. Traz-nos uma culpa pelo que desperdiçamos, nos indica uma perspectiva escamoteada pelas políticas públicas e índices eleitoreiros, escancara o que não queremos ver, mostra que este Brasil existiu desde sempre e ainda existirá por muito tempo. A situação de insegurança alimentar que esse filme expõe também identifica uma condição internacional, já que há esta fome em todo globo. Aqui temos um detalhamento apurado do cotidiano dessas famílias à beira de um precipício. E não há melodramas, novelas ou um quê de responsabilidade social que poderia ser pregado como um religioso no seu palanque/palco. A idéia que temos ao assisti-lo é simplesmente de que é daquela forma que realmente eles vivem. E isso sim, é a mais grave e dolorosa conclusão.

Garapa
Direção: José Padilha
Ano: 2009 - Brasil

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5 Comentários

  1. Maravilhoso seu texto e sua análise. Não assisti "Garapa", mas vi "Estamira". Dolorosamente belo. Especificamente sobre seu comentário a respeito do sentimento de culpa frente ao paradoxo de ver a família padecendo de fome vs a equipe de produção bem alimentada:

    sendo equipe de cinema ou TV, sendo um documentário ou uma reportagem de denúncia, o importante é que aquela realidade foi retratada e não deve ser julgada sobre a lente da exploração capitalista ou mesmo artística. Que fique a arte-denúncia. Vivemos demais sob couro grosso. Fechamos os olhos para as crueldades que cruzam nosso caminho diariamente como forma de sobrevivência, mas que bom saber que ainda nos permitimos nos sensibilizar. Que bom saber que ainda existe algo de humano e não de pedra dentro de nós. Não temos que sentir culpa de termos acesso ao nosso direito básico de viver uma vida digna. Que nos sirva a arte para nos lembrar de sermos generosos com pessoas, bichos, natureza e comunidade. Para nos lembrar que é preciso conservar e não desperdiçar. Que é preciso saber consumir com moderação. Que é preciso saber escolher bem em quem se vota para integrar TODOS os brasileiros na sociedade, dando-lhe não apenas comida, mas futuro.

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  2. Adorei o seu texto, Tati! Bastante contundente, tal como o filme. Padilha tem se tornado cada vez mais polêmico e interessante. Sempre expondo feridas, culpas e questões éticas tanto com os temas que escolhe quanto com a forma do seu cinema em si. Assisti Garapa no Festival "É Tudo Verdade" do ano passado e no final da sessão ele falou justamente sobre essa questão ética que você menciona e o quanto foi difícil lidar com tudo isso durante as filmagens. Realmente o sentimento que fica na gente não é dos melhores. Tudo fica parecendo fútil e mesquinho. Mas, temos que seguir nossas vidas fazendo, pelo menos a nossa parte da melhor forma possível.

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  3. Tati, Achei muito bom o seu texto sobre este documentário. Assistimos aqui e eu nem conseguir ir até o fim.
    Você falou e retratou muito bem.
    Bjus
    Sua mãe

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  4. Quero assistir esse documentario. Tem na sua casa é? Vou roubar de Tia Stela!

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  5. eu sei que esse limiar entre o profissional e o humano é um questionamento recorrente para os profissionais que retratam a crueza de histórias como esta. Eu não conseguiria. É o conflito entre o retratar ou ajudar que foi flagrante em situações de afogamentos, assassinatos, acidentes. Figuras como Luciano Huck acabam se tornando heróis populares por que buscam quebrar esse limítrofe, utilizando o poder que possuem para realizar beneficios aos que estão sendo retratados. É claro que este exemplo foge em muito ao do filme, mas já dá pano pra muita manga.

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