Crítica: (a violência em) Amarelo Manga (2002)

by - março 20, 2008

Entender do que trata o Amarelo Manga é perceber o Brasil sob um viés radical e crítico. Cláudio Assis trouxe para nós o que há de sujo e pobre em Recife, uma das capitais de potencial de efervescência cultural do país. Este não é simplesmente um filme de apresentação do grotesco, mas um retrato de nós que não queremos colocar em nossos álbuns.

Atualmente, o cinema brasileiro vive um momento de retomada. Bastante visado, esse período procurou transcrever para as telas o que se vê no cotidiano. Houve Cidade de Deus (2002), Carandiru (2003), Amarelo Manga, apenas citando os mais violentos e de mais sucesso e/ou polêmica. O interessante é perceber que a violência destes filmes é o que mais marca o espectador; ao assistir um filme americano, passaria desapercebida. Por que, então, a nossa violência nos assusta?

Porque não a queremos como nossa. Não a entendemos como parte de nós, agravada por condições sub-humanas de existência mínima. A violência em Amarelo Manga é da classe pobre, dos mestiços, dos escravos revoltos, das classes perigosas¹. A classe média, tão próxima dessa condição, a repudia, sustentando-se no tênue fio da esperança de um dia fazer parte da facção abastada.

Em Amarelo Manga, o diretor tenta nos mostrar a classe perigosa vista de dentro, de quem faz parte dela. São os moradores do Texas Hotel - que nada mais é, senão uma rememoração dos antigos cortiços - os da favela, o faz-tudo do hotel, o padre sem fiéis, a dona do bar, o açougueiro, sua mulher. Pessoas sem esperança de qualquer ascensão na vida social, que assumem o que são, sem nem entender como. Esta é componente da identidade nacional, em grande parte rejeitada pelas classes privilegiadas. Há uma aceitação da classe pobre, mas não a assimilação do que ela é e de que ela faz parte do todo, um tanto por não aceitar suas origens e outro por simplesmente não entendê-las e aí entra o preconceito com a adoção do conceito de classe perigosa, surgindo em meados do século dezenove na França e incrustado erroneamente na carne brasileira.

Ao que se sabe, a classe pobre se formou no país enquanto colônia, a partir de um setor já marginalizado em sua metrópole. Imigrantes aportaram aqui e alguns conseguiram realizar fortunas, já outros, permaneceram tal qual em Portugal. Havia ainda os escravos e os colonos. A cada setor cabia sua função. Ao branco pobre livre, o trabalho informal, o descaimento para o crime – seja por subsistência ou vadiagem – ou uma vida de favores, o escambo com os colonos, causando uma dependência, um vírus que até hoje contamina nossa identidade. Ainda aqui percebemos o filme; o jeitinho brasileiro ou o favor de outrora funciona no câmbio de um necrófilo com um policial, um cadáver por maconha.

O hotel, moradia de maior parte dos personagens não passa de um cortiço tal qual Aluísio Azevedo descreve ou relembrando as antigas pensões do início do século. Abriga toda a sorte de pessoas e lá é quase onde todos se encontram. Texas Hotel, nome dado ao curta, que é uma prévia do filme em questão, simboliza a decadência de uma cidade em ruínas, ou uma versão que quase nunca assistimos em filmes, as ruínas que nunca são reformadas, porque ninguém as vê. É redundante mencionar que esse ninguém é uma exclusão da maior parte da população do país.

O filme ainda aponta, e aí entra uma questão polêmica, dois pontos a se pensar: a circularidade que a rotina daquelas pessoas faz em suas vidas e a percepção de uma camada social visitada por ela mesma, esse é um dos poucos filmes onde não encontramos luta de classes, posto que só vemos uma. A circularidade é marcada no início e fim do filme, com a dona do bar, que significa o amarelo manga, cor-título do filme e da atriz. Notamos que essa rotina anuncia a ruptura com os demais filmes, onde é perceptível o almejo às grandes ambições e desejos; aqui nada foge ao viável, cotidiano nosso, previsível. O visitar de uma classe social por ela mesma. Ora, é sabido que o filme não é feito por alguém do povo, é um classe média. Mas sabemos também que é possível realizar um filme que alie uma classe social com sua característica própria, ainda que nela não se esteja inserido. O Cláudio Assis o faz. Transporta, com seu foco ficcional, a realidade para a tela, trazendo, claro inserções autorais, mas mantendo-se fiel a sua proposta, que é eviscerar a sociedade, denunciando-a.

Esse panorama da pobreza é, por fim, realidade do país em todos os seus estados. Em Recife, Cláudio Assis a interpretou, assustando espectadores mais sensíveis à luz quase apagada do fim do túnel do cotidiano ou apenas trazendo-a para fora, para a emergência luz do dia. É um choque visceral e instintivo. Tendo suas cores – o vermelho sangue e do sangue, o verde escuro, o jogo com claro e escuro, o amarelo, o filme espelha as escoriações sociais que nos permitimos esconder para um convívio ameno.

¹CHALOUB, Sidney. Cortiços in Cidade Febril – Cortiços e Epidemias na Corte Imperial Ed. Companhia das Letras. (pp.20-21)
*texto de 2002

Posts relacionados

0 Comentários